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Pessoas tóxicas: Cara ou coroa?

tóxicas

Vamos pensar sobre: pessoas tóxicas.

CARA

Todos nós já lemos artigos, livros ou ouvimos alguém falar sobre este tema. Pessoas tóxicas são aquelas que, de alguma forma, conseguem entrar no nosso espaço pessoal deixando-nos desconfortáveis e recorrentemente com a sensação de cansaço. Diria que, mais que entrar, essas pessoas impõem-se no nosso espaço. Têm por hábito comparar-se a outras pessoas, exagerar no relato dos seus desafios e costumam apresentar-se com uma postura negativa.

É usual encontrar como solução o afastamento. Quando se trata de indivíduos que não têm impacto diário ou regular na nossa vida esta solução é viável. E quando falamos de familiares, amigos e colegas? Aqui o desafio é maior. Não existem formulas mágicas, atalhos ou soluções fáceis. O caminho pode passar (1) pela reflexão sobre a postura da pessoa em causa e perceber se há ou não uma maneira de ajuda-la e (2) perceber que aprendizagem ou exemplo traz esta situação. (3) Parece-me ainda importante entender porque esta pessoa tem este impacto, estaremos a abrir demais o espaço pessoal ou é um tema que ressoa e é preciso trabalhá-lo?

COROA

E porque todas as moedas têm duas faces. Convido-vos a pensar no lado que não costuma ser exposto.

E eu? E tu? Seremos pessoas tóxicas? Temos comportamentos tóxicos que influenciam a vida e bem-estar de alguém? Quando foi a última vez que te colocaste neste papel?

Se existem pessoas tóxicas e queremos melhorar significativamente o nosso contexto é importante colocarmo-nos em causa. Se é simples? Não. Se é necessário? Sim.

Hoje deixo este desafio: tira 30 minutos, pensa nas pessoas que te são próximas e que convives diariamente e coloca esta pergunta: Que tipo influência tenho na vida dos outros e que exemplo quero dar?

Este exercício trará mais consciência daquilo que atrais, se estás alinhado com os teus valores e se deves adaptar o teu comportamento em algumas situações ou com pessoas especificas.

Recordando a máxima de Gandhi: sê a mudança que queres ver no mundo.

 

(este artigo rege-se pelo antigo acordo ortográfico)

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Turistas com telhados de vidro

turistas

Episódio #1

É Agosto e estou em Portimão, no Algarve. Eu e a minha mãe dirigimo-nos cedo para a paragem de autocarros mais próxima de casa. Queremos apanhar o Vai Vem das 8h26 para a Praia da Rocha. Quando chegamos à paragem, cinco ou seis pessoas aguardam já o pequeno autocarro, sentadas nos bancos. São todas da terra e vão trabalhar. Não fazem fila, mas mantemo-nos ambas atentas a quem está à nossa frente para respeitar a ordem de chegada. Depois de nós, chegam mais utentes e começa a formar-se uma fila tímida. Quando o autocarro chega, os utentes que estavam sentados dirigem-se para a porta e toda a gente começa a organizar-se para entrar respeitando a ordem de chegada.

Toda a gente, com exceção de um casal — ele bastante velho, ela nem tanto — que foi o último a chegar ao local, mas tenciona ser o primeiro a entrar no transporte. Perante as suas movimentações bruscas para chegar à porta do autocarro antes dos outros, a minha mãe chama-lhes a atenção para as pessoas que tinham chegado primeiro, ao que a senhora, com ar de espanto, pergunta: “Aqui fazem fila?!” Olho-a de esguelha e respondo “Aqui e em todo o lado” e ouço incrédula a seguinte réplica: “De onde eu venho só se faz fila nos consultórios médicos.” Neste momento toda a gente ouve a conversa, que começa a subir de tom, e ficamos entre o riso e a perplexidade.

O velhote, curvado e com pernas mirradas, aproveita a estupefação geral e, lampeiro, acaba mesmo por ser o primeiro a entrar no autocarro. Mas o resto dos passageiros entra por ordem de chegada e a senhora que acompanhava o velhote é a última a subir, como lhe compete. Não percebi exatamente em que terra só se fazem filas nos consultórios médicos, mas o que era claro é que a senhora falava com uma acentuada pronúncia do norte e um sotaque afrancesado. Ao sentar-se junto do velhote, alardeia que o companheiro é “handicapé” (deficiente, em francês) e que no dia seguinte trará a bengala para ser o primeiro a entrar no autocarro.

Não quis perder tempo a explicar-lhe que teria de fazer fila na mesma e só depois beneficiar dos assentos reservados aos “handicapés”, até porque a senhora rapidamente dispara nova pérola: “Venho para aqui gastar o meu dinheiro para vos dar de comer e sou tratada assim? Para o ano não venho e comem merda!”. Um enorme “Oh!” percorre o autocarro cheio de portimonenses enojados com o que ouvem.

Levanta-se um coro de protestos, muitos abanares de cabeças, críticas veementes àquela atitude deplorável e uma outra passageira, que tinha fisgado o sotaque afrancesado da energúmena, arrisca: “Olhe que eu também já fui emigrante e sei que lá fora se fazem filas em todo o lado”, ao que a possidónia tem a lata de responder “Deve ter sido lá na terra dos arábes (dito assim mesmo, com sotaque afrancesado), que são todos iguais a vocês.” Ainda lhe atiro um “Não só é mal educada como é xenófoba!” e depois o motorista, oriundo do leste da Europa, é que põe ordem na coisa, levantando-se e explicando alto e bom som que nas paragens dos autocarros deve-se fazer uma fila única. “Um atrás do outro, atrás do outro, atrás do outro” diz, enfatizando tudo com as mãos e os braços.

Mais tarde, nessa mesma manhã, e também nos dias seguintes, era ver o suposto handicapé a fazer longas caminhadas no areal da Praia da Rocha, cheio de gás nas pernas e sem bengala.

Episódio #2

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Como sempre, chegamos cedo, eu e a minha mãe. Ainda não são 9h quando pomos os pés no areal deserto e espetamos a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada. As gaivotas dormitam, pousadas, e o silêncio é balsâmico. Depois as horas vão passando e os outros vão chegando. Por volta das 10h30 já estamos rodeadas de gente que também quer espetar a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada, mas que mantém uma distância respeitável em relação a nós porque ainda há espaço.

Mas há quem queira dormir até tarde, e queira chegar à praia por volta do meio-dia e, ainda assim, achar ter direito ao melhor lugar para o espetáculo, qualquer coisa como um assento no fosso da orquestra, ainda que esse lugar não tenha mais de um metro quadrado e a família seja de quatro e haja duas sombrinhas e quatro cadeiras e quatro toalhas para acomodar, mesmo que coladas aos pés ou ao nariz do vizinho, que terá de se amanhar porque a vida é uma selva e só se salvam os chicos-espertos. Tudo isto, ainda que haja 700 metros de areia desocupada para trás, entre o lugar sobrelotado e a falésia… É nessa altura que o arraial se torna insuportável e decidimos levantar âncora.

Pela primeira vez em quase 45 anos de praia (na minha terra ou noutra terra qualquer) vejo uma família, portuguesa com certeza, correr na nossa direção e — sem esperar sequer que nos vestíssemos, sacudíssemos as toalhas e arrumássemos o guarda-sol — pousar toda a sua tralha aos nossos pés. E depois ficam ali especados, de pé, a olhar para nós como quem diz “Então, ainda demoram muito?” Perante a minha expressão de repulsa e indignação, o pai de família olha-me com candura (ou estaria apenas a fazer-se de parvo?) e tem a real lata de me dizer: “Esteja à vontade”. “À vontade estava eu antes de vocês chegarem”, respondo com maus modos e a controlar a vontade de lhe apertar o pescoço.

Percebo, contudo, que se estão a borrifar para o que eu sinto, inebriados pela conquista do dia, quiçá de todas as férias ou até do ano: um mísero lugar ao sol, provavelmente pago a muito custo e onde desfrutarão da delícia que é estar-se promiscuamente entalados entre estranhos.

Episódio #3

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Eu e a minha mãe chegamos, de novo, antes das 9h, ocupamos um lugar na fronteira entre a areia seca e a areia molhada e vamos assistindo à chegada lenta dos outros que, ignorando ostensivamente o gigantesco areal deserto que fica para trás, nos vão espartilhando, espartilhando, espartilhando. A minha mãe faz notar que não vê ninguém de Portimão na praia. Por entre os milhares de caras, não reconhece ninguém. De novo, chega uma família portuguesa de quatro — pai, mãe, filho e filha adolescentes — e decidem montar o estaminé onde achámos que ninguém ousaria instalar-se, por não haver espaço para estender uma toalha sequer. Comento em voz alta: “Olha, agora somos todos primos” e a minha mãe solta um “Isto é inacreditável!”

Pouco depois, quando nos vamos embora, o pater famílias levanta a voz e, tratando a minha mãe por tu, desfere um “Vai-te embora, vai procurar uma praia só para ti!” Antes de notar a falta de respeito para com a minha mãe e a boçalidade do homem, penso no triste exemplo que dá aos filhos.

Estes três episódios são míseros apontamentos no meio de milhares e milhares de outros episódios semelhantes, testemunhados ano após ano por quem vive em locais que despertam o apetite dos turistas nacionais, nomeadamente nas zonas costeiras, sejam elas a sul ou a norte. Quem lá vive o ano inteiro, há muito que suporta comportamentos incivilizados, egoístas e arrogantes de quem arriba por duas semanas em modo veni vidi vici, “e que se lixem os outros, sejam eles da terra ou turistas. Sonhei com isto o ano todo e ninguém me vai estragar as férias a que tenho direito e com tudo a que tenho direito, até porque se não viesse gastar o meu dinheiro os desgraçados que aqui vivem não tinham onde cair mortos”. Um clássico…

E nós, os locais, a observá-los e a fazer do assunto tema de conversa todos os anos, por entre gargalhadas escarninhas, porque demasiadas vezes não conseguimos entender sequer porque sai aquela gente de casa e gasta dinheiro se — apesar do sol garantido, do mar quente e dos dias longos longe do trabalho — chegam a bufar e continuam a bufar durante todas as férias:

descarregam a impaciência nas buzinas dos carros como se ainda estivessem no IC19, reclamam da lentidão nas filas dos supermercados como se ainda estivessem no Continente da Senhora da Hora, aconchegam-se bem uns aos outros nos areais como quem tem saudades do open space onde partilham uma secretária atravancada com os colegas da repartição, disputam mesas em esplanadas e restaurantes como se fossem as últimas coca-colas no deserto e passam parte do dia a rogar pragas por não encontrarem onde estacionar o carro, de preferência à porta da casa alugada ou mesmo junto ao acesso à praia. Incapazes de relaxar, perpetuam o ciclo vicioso stressante, porque é nele que se sentem confortáveis sem que disso tenham consciência. Obviamente, partem a bufar.

Nos idos anos noventa, quando fui de Portimão estudar para Lisboa, era comum ouvir por lá o discurso de que fazer férias no Algarve era demasiado caro para a fraca qualidade oferecida. Muitos portugueses preferiam a costa e as ilhas espanholas, com preços mais acessíveis. Achei sempre piada a essas queixas por parte de quem só tencionava ir ao Algarve duas semanas por ano, quando aos algarvios cabe viver com uma carestia transversal, que demasiadas vezes implica repensar o que se põe na mesa para comer por causa dos preços que quase triplicam em certas épocas do ano.

Apesar do caos urbanístico que dificilmente poderá ser revertido — quem se atreveria a correr a costa sul a buldózer? —, julgo que se percorreu um longo e ascendente caminho no respeitante aos serviços disponibilizados aos turistas (ainda haverá restaurantes sem ementas em português?) e só isso explica que insistam em regressar ao Algarve ano após ano. Mas para quem lá vive os desafios permanecem, e talvez se tenham até agudizado. É por isso que alguns optam por fazer as suas férias longe da costa, em paragens mais pacatas, e muitos se fecham em casa, evitam as praias e os centros das suas cidades, esperando pacientemente pelo desafogo de Setembro.

Não quero com este discurso parecer vingativa, dizer com soberba, aos que agora começam a conviver com hordas de turistas, “bem-vindos ao nosso mundo”. Não, não é isso. Primeiro porque cresci com o turismo de massas à porta de casa e habituei-me a ele; segundo porque não quero cair no erro de diabolizá-lo — o turismo tem, definitivamente, coisas muito boas; terceiro porque o desafio colocado aos lisboetas e aos portuenses é mais exigente: escapadinhas nas cidades fazem-se todo o ano, faça chuva ou faça sol; ir à praia é que nem por isso, o que dá azo a folgas retemperadoras.

Quero, com isto, recordar-lhes que o assunto não é novo em Portugal, nem começou com o advento das companhias aéreas low cost que aterram na Portela e em Pedras Rubras. Quero recordar-lhes que estamos sempre a tempo de corrigir e de melhorar, sobretudo se aprendermos com os erros cometidos pelos que começaram a lidar com este desafio há várias décadas. E, principalmente, quero recordar-lhes que todos nós somos turistas. Julgo, por isso, que será conveniente pormos a mão na consciência, pararmos por uns minutos de criticar os “açambarcadores” que vêm de fora transtornando as nossas rotinas, e pensarmos primeiro sobre a forma como nós, portugueses, nos comportamos enquanto turistas cá dentro.
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Do outro lado do medo

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Medo da rejeição. Medo do abandono. Medo da humilhação. Medo da traição. Medo da injustiça. Estes são cinco dos medos básicos inerentes à condição humana, que se desenvolvem com maior ou menor intensidade segundo uma série de variáveis no nosso percurso de crescimento emocional.

Associado a cada medo existem necessidades psicológicas que, por não terem sido preenchidas em idade infantil, criam carências que transportamos ao longo da vida. Uma criança que tenha sentido traição ou abandono por parte de uma figura de referência permanece com esse sentimento registado no seu aparelho psíquico, o qual lança um sinal de alerta numa relação posterior onde sinta proximidade afetiva. O medo subjacente, despoletado nos primeiros anos de vida, condicionará as dinâmicas interpessoais em adulto, através de estratégias e mecanismos de defesa que adotamos de modo a evitar reviver o mesmo tipo de situação.

Assim, chegamos ao ponto de dizer ‘diz-me o que queres que eu faça, basta que não me deixes!’. Disponibilizamo-nos a fazer o que estiver ao nosso alcance para não passar pelo que outrora nos causou tanto sofrimento. O paradoxo surge quando, ao tentar evitá-las, acabamos por as provocar, repetindo-se assim o trauma mediante um padrão do qual queremos sair e não sabemos como.

Procuramos preencher as nossas carências através dos outros, esquecendo-nos que esses outros não existem para nos preencher. Cada pessoa tem as suas mazelas de crescimento, tem os seus medos e necessidades, e enquanto virmos no outro a fonte da nossa salvação vivenciamos um choque de exigências e cobranças, tornando a relação uma luta em vez de um aconchego.

Como passar de um campo de batalha, onde somos cada vez mais atacados e feridos, para um terreno seguro e nutridor, no qual vamos sanando o nosso coração?

Inicialmente procuramos o que nos é familiar. Não questionamos os hábitos que adquirimos até nos permitirmos ter uma experiência diferente que nos faça sentido. Se em criança somos sujeitos a críticas, assimilamos uma imagem negativa de nós próprios que nos acompanha como se fosse verdadeira. Podemos nem ter consciência dela, mas uma baixa autoestima condiciona as escolhas de vida e a qualidade das nossas relações. Se os nossos pais são demasiado protetores e nos incutem que o mundo é perigoso, a forma como nos movimentamos dificilmente será de confiança, pois tudo é visto como um risco. São inúmeros os exemplos que resultam em crenças falsas e prejudiciais, que condicionam o nosso sentir, logo, a nossa interação com o exterior.

Uma cliente minha sofre horrores no trabalho. Sente-se posta de lado pela dificuldade em aderir ao ambiente de euforia e diversão. Fica triste, o que, por sua vez, não é bem acolhido pelos colegas, intensificando assim a sensação de exclusão. A sua angústia começou a traduzir-se em sintomas físicos de fortes dores de barriga, dores de cabeça e tonturas, a ponto de recorrer a baixa médica. Longe do trabalho os sintomas aliviam, mas perante a ideia de alta reaparecem. Percebemos pela sua história que existe uma grande lacuna na necessidade psicológica de pertença. Quer fazer parte, mas as atitudes do grupo – e as dela própria – aumentam a sua dor de exclusão, potenciando, paralelamente, a sua necessidade de pertença. Vive numa carência profunda sem encontrar modo de sair desta pescadinha de rabo na boca.

Porque é que não muda de comportamento e se torna mais sociável? Ou porque é que não procura pessoas mais em sintonia com ela? Porque não é isso que o seu sistema emocional conhece! O que o seu sistema sabe fazer é tentar desesperadamente sentir-se pertence junto de pessoas que não a acolhem, que a criticam e que lhe provocam uma sensação de desadequação, pois foi isso que viveu em criança.

Estamos perante o que chamamos de repetição do padrão. Ao longo da vida repetimos um padrão de comportamento porque não conhecemos outro, por muito tóxico que ele seja. Quem viveu a falta de atenção e carinho em criança, vai cruzar-se com pessoas de quem não recebe suficiente afeto porque essa é a energia que lhe é familiar. Pessoas que dão carinho e atenção não se ajustam ao seu sistema de funcionamento na medida em que é um tipo de vibração que desconhece, que estranha, por muito que precise dela. Quem viveu a crítica sente-se inconscientemente atraído por pessoas que criticam, pois as outras não entram no seu radar. Quem sofreu a traição ou a humilhação, facilmente entra em relações onde é maltratado e traído, caso contrário não vincula. Curiosamente somos excelentes em dar aos outros o que nos faltou e precisamos de receber…

Qual a lógica de procurar algo que na prática rejeitamos, insistindo em receber o oposto do que queremos?! Repetimos um padrão simplesmente porque é o que conhecemos, mas como estamos num caminho onde, felizmente, o crescimento é possível, um passo nesse sentido é quebrar com o que nos é nocivo. No entanto, crescer implica fazer escolhas que se coadunam com as nossas necessidades de forma natural e não forçada, o que significa que algo interno tem de mudar. Imposições lógicas e racionais externas não funcionam.

Para crescer não basta perceber cognitivamente o mecanismo, há que sentir emocionalmente que chegou o momento de romper com um determinado padrão – que é fruto da nossa dinâmica interna e não da pessoa que o desperta em nós. A toxicidade está na nossa reação, não no outro. Precisamos de colocar a nossa integridade em primeiro lugar, valorizar o amor próprio e o autorrespeito em detrimento de uma carência infantil que berra pela atenção do outro e que entra em litígio quando não obtém o que quer. Chegou a hora de olhar mais para nós próprios e menos para o outro em função de nós. O outro nunca vai suprir as carências nem curar as nossas feridas. Em criança isso era possível, em adultos já não.

A possibilidade de alcançar esta clareza emocional chega quando se atinge um ponto de exaustão. Só no limite conseguimos declarar com convicção ‘já não aguento mais, algo tem de mudar. Não sei como fazer, só sei que assim já não dá para viver’. Só quando a dor se torna insuportável começamos a considerar a hipótese de desistir da rigidez do passado e dar um passo novo. Daí a importância de nos abrirmos ao sentir, de ouvir a nossa parte emocional. Quanto mais nos disponibilizamos a contactar os nossos sentimentos, mais sentimos a dor, mas só no contacto com a dor conseguimos quebrar os padrões de condicionamento.

A mudança implica o maior ato de coragem que podemos alguma vez ter: entregarmo-nos à possibilidade de reviver o nosso grande medo, a nossa cena temida de criança, com a consciência de que agora, em adultos, temos uma estrutura interna suficientemente forte e autónoma, capaz de dar uma resposta diferente ao exterior com vista a sair da prisão causada pelo trauma sofrido. Atraímos as pessoas e as situações que nos ativam as feridas internas não apenas porque nos são familiares, mas também porque só na relação com elas temos a oportunidade para alterar o nosso comportamento.

A mudança não é estanque, não passa por um corte repentino com o velho para amanhã acordar novo. Trata-se de um processo faseado em três etapas:

  • Adquirir consciência dos nossos mecanismos internos: medos, necessidades, feridas, defesas, carências que deixaram marcas profundas; conhecer a nossa história e fazer as pazes com ela, observando-a com amor e carinho.
  • Aceitar, ver as realidades interna e externa por aquilo que elas são, dissolver a ilusão de um passado e/ou de um futuro no qual fantasiamos acudir as necessidades junto de quem nos ativa as carências e que o outro vai mudar para nos salvar. Agora somos nós os nossos cuidadores; os outros podem (ou não) fazer-nos companhia neste processo.
  • Experimentar o que desconhecemos, abrirmo-nos ao imprevisível com a certeza de que o antigo já não serve o nosso propósito.

Dizer ‘não’ a situações e pessoas que nos atraem mas que nos fazem mal, largar e abrir mão do que temos vivido até aqui, distanciarmo-nos do que nos causa uma reincidência da dor, desta vez não por fuga ao sofrimento mas com a consciência de que isso alimenta uma dinâmica tóxica, é o que cria a verdadeira mudança num processo de evolução psicológica. Chegamos aqui se ao longo do caminho formos alimentando uma energia de amor e compaixão por nós próprios, pois a capacidade de abrir mão do tóxico apenas surge quando sentirmos uma necessidade urgente de agarrar o que é nutridor.

É imprescindível olhar e cuidar do nosso ser para que as escolhas sejam guiadas não pelas carências, medos e desejos do nosso ego, mas pelas necessidades reparadoras da nossa essência. Enquanto vivermos no medo de perder, não vivenciamos o que se esconde do outro lado: a liberdade de sermos nós próprios num caminho de desapego do passado e de amor incondicional pelo presente.

Foto de Bernardo Conde (www.bernardoconde.com)