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Vamos dar-lhes música?

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Ando a habilitar-me. Um dia destes desço do metro com um olho negro ou saio de um autocarro com uma mão marcada no rosto. Se não acontecer pior. Uma vez, houve até uma senhora que, já na rua, me abordou e disse: “Menina, isso um dia corre mal. Mais vale ficar calada.”

Sinceramente, não sei porque ficam as pessoas tão ofendidas comigo. Sou sempre muito educada quando as abordo e os meus pedidos, feitos num tom calmo, incluem expressões de cortesia como, por exemplo: “Não se importa de tirar os pés do assento, por favor?” Por norma, recorro também a um ligeiro sorriso, para deixar claro que venho por bem.

Nestes casos, nunca obtenho resposta. Limitam-se a tirar os pés do assento e mantêm-se em silêncio, de cara enfiada no telemóvel. Houve um único jovem que me pediu desculpa e disse que eu tinha razão. Dessa vez fui eu que fiquei sem palavras. Lembro-me de ter pensado que tinha perdido uma boa oportunidade para usar a expressão de cortesia “por obséquio”, de que gosto tanto. Ele teria percebido. Os outros poderiam ter pensado estar a insultá-los, à laia de “inoque”.*

As coisas azedam verdadeiramente e o tom sobe muitíssimo quando o assunto é a música. Insisto na expressão de cortesia e no sorriso — “Não se importa de usar auriculares ou de desligar a música, por favor?” Porém, neste caso obtenho sempre reações viscerais e, pior!, devolvem-me sistematicamente uma pergunta desconcertante, reveladora de um grau grave de alienação (ou será egoísmo? Ou será má educação? Ou será falta de civismo?): “Mas isto está a incomodar?!”

“Não meu energúmeno adorável, não está a incomodar nadinha. Apenas decidi sair à rua e implicar consigo, porque sim.” É o que me apetece responder. Mas opto pela sinceridade e apelo à consciência do meu interlocutor: “Está a incomodar sim. O que o leva a achar que tem o direito de nos impor a sua música? Já pensou no que aconteceria se todos nós nos comportássemos da mesma maneira e cada um ouvisse alto e bom som a música que lhe apetece? Acha que ia ser agradável?” Em vão… Raras são as vezes que desligam a música ou recorrem a auriculares. Houve quem aumentasse o volume. Houve quem me insultasse. Que tenho “a mania” foi do mais suave que ouvi. Há umas semanas, um jovem retorquiu-me que se usasse auriculares eu ouviria a música na mesma. Caí no erro de lhe explicar que se os auriculares fossem de alguma qualidade isso não aconteceria. Acusou-me de estar a insinuar que ele não tinha dinheiro para comprar auriculares de qualidade.

Nestas circunstâncias nunca sei o que me desorienta mais, se o absoluto desrespeito destas pessoas pelos outros utentes dos transportes públicos, se o pesado silêncio que se faz invariavelmente à minha volta. Nunca ninguém ­— ninguém! — me apoiou nestas iniciativas. O desconforto torna-se palpável, não sabem onde pousar o olhar. Afinal, quem é mais alienado?

As Condições de Utilização de Transportes Coletivos do Porto (STCP), dizem preto no branco, na alínea “h” do Artigo 188º que “Aos passageiros de transportes coletivos é proibido utilizar aparelhos de T.S.F. [vulgo rádio; este código está a precisar de uma atualização urgente…] ou fazer barulho de forma a incomodar os restantes passageiros.” As Condições Gerais de Transporte do Metro do Porto deixam também muito claro na alínea “t” do Artigo 4º, que é proibido “Utilizar aparelhagem sonora, ou fazer ruído, de forma a incomodar os outros clientes no interior dos veículos.” Paralelamente, em 2015 foi publicado no Diário da República um novo diploma que prevê multas até 250 Euros para os utentes de transportes públicos que coloquem os pés nos assentos ou façam barulho que incomode os outros passageiros. Mas quem lê estas letras pequenas? Ninguém, certo? Sobretudo gente que não tem aquela parte do cérebro onde costuma alojar-se o bom senso. Ou porque nasceu sem ela ou porque por falta de uso se desligaram esses circuitos neuronais.

A minha experiência enquanto utente dos transportes públicos no Porto diz-me que não há fiscalização. Já vi elementos das equipas que zelam pela segurança no Metro do Porto e nos STCP passar por utentes em atitudes desordeiras, como as que descrevi, sem fazer qualquer reparo. Não lhes compete? Não querem saber? Dá muito trabalho? Terão medo? A única preocupação é fiscalizar os títulos de transporte. Desde que os tenhamos em dia e validados podemos comportar-nos como animais.

No respeitante aos pés nos assentos ainda não pensei no que podemos fazer. Mas quanto à música ocorreu-me há dias o seguinte: à falta de fiscalização, julgo que podemos todos incorrer numa desobediência civil massiva sem riscos de coimas e proponho que, na presença de alguém a impor-nos a sua música, puxemos todos dos nossos telemóveis e ponhamos a tocar uma melodia bem alto. Mais ou menos como um flash mob.

Heim, que dizem? Não gostam de flash mobs? Gostam mais de ficar calados, é? Bem… Vou então escrever ao Presidente da República. O meu plano b é mais ambicioso: pedir-lhe que apadrinhe uma campanha nacional em prol do civismo. Sugiro desde já as empresas de telecomunicações para principais patrocinadoras da iniciativa.

*Referência ao conto “A Palavra Mágica” de Vergílio Ferreira. Num diálogo alguém usa a palavra “inócuo” que os habitantes da aldeia, por não lhe entenderem o significado, acham ser insultuosa. Deturpam-na e começam a chamar “inoque” uns aos outros quando pretendem ofender-se.