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Ultrapasse as crenças que o limitam

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O que são as crenças e como as construímos?

Todos nós, seres humanos, partilhamos a mesma genética e algumas capacidades inatas — a da linguagem articulada, a dos sentidos e sentimentos, a de interagir com o próximo, etc. — que nos permitem desenvolver como pessoas. Por outras palavras, possuímos muitos traços universais que nos tornam diferentes mas também muitos outros que nos diferenciam — como a nossa história pessoal, os nossos pais, a nossa língua materna, o lugar onde nascemos, a comunidade e a cultura que nos recebem — e que influenciam a nossa visão do mundo e o modo como interpretamos a nossa experiência de vida.

Ora, isto estrutura‑se num sistema de crenças básicas que fazem parte da nossa bagagem de vida e constituem um filtro no qual assentamos as bases dos nossos princípios e que molda o nosso comportamento e configura a nossa forma de sentir e de pensar; este filtro está tão profundamente enraizado em nós que não nos apercebemos de que condiciona cada instante da nossa vida. Para diminuir o esforço e o desgaste energético inerente à realização das suas várias tarefas ao longo do dia, o cérebro procura uma forma de simplificar esse grande número de estímulos. Para fazer isto, uma das estratégias que usa é ir assimilando as novas informações que lhe vão chegando, mas tende a generalizar e a fazer associações a partir dos dados nele armazenados e do software que foi criando e lhe permite processar toda a informação que recebe.

Quando não desenvolvemos suficientemente a autoconsciência através do exercício de questionamento constante das nossas crenças, estas vão‑se enraizando aos poucos no nosso ser e acabam por se transformar em impulsos automáticos. É então que deixamos de controlar os nossos atos e os substituímos por respostas automáticas.
Gostaria que o leitor compreendesse que utilizo o termo crença, que é a tradução do vocábulo inglês belief, não para me referir a quaisquer valores existenciais ou religiosos mas a um sistema de ideias ou pensamentos que o ser humano vai construindo a partir da sua experiência de vida e da forma como interpreta essa experiência.

Construímos automatismos a partir das nossas crenças

Cada um de nós vai traçando a sua história pessoal ao longo dos anos. Por isso, todos temos já experiências acumuladas; já recriámos as memórias e as emoções que nos são desagradáveis; adotámos, inclusivamente, a forma de pensar e de agir de outros, e é esta bagagem subconsciente que influencia os nossos pensamentos, os nossos comportamentos e até os nossos sentimentos.

De acordo com a corrente da Psicologia chamada PNL (Programação Neurolinguística), a mente subconsciente representa 90% do total da nossa mente, pelo que nos é absolutamente necessário aceder a ela para sabermos quais são os impulsos mais profundos subjacentes ao nosso modo de viver. Se não formos capazes de contemplar a nossa mente subconsciente e observar a programação social e intelectual que temos vindo a receber desde a infância, ser‑nos‑á impossível ver as coisas tal como elas são sem nos enredarmos nos sentimentos complexos que temos vindo a criar e a projetar ao longo da nossa vida.

Adaptamos naturalmente a nossa atitude em função daquilo em que acreditamos e, de certa forma, acabamos por nos transformar nas pessoas que quem nos rodeia espera que sejamos. E isto porquê? Porque tendemos a interpretar cada gesto e cada palavra, e filtramo‑los recorrendo ao crivo das nossas crenças em vez de estabelecermos realmente contacto com o outro, sempre buscando os motivos que o levaram a agir de determinada forma.

Por este motivo, é imperativo não julgarmos as atitudes dos outros, pois as previsões têm um efeito bastante forte sobre as pessoas. De facto, as projeções conscientes e subconscientes acabam por influenciar o que as outras nos revelam do seu caráter. É evidente que nem todas as projeções têm o mesmo poder, pois as que mais nos influenciam são as que provêm das pessoas de quem dependemos, como pode ser o caso dos nossos pais, chefes, professores, etc., ou das pessoas em quem nos projetamos, como é o caso de quem admiramos ou das pessoas perante as quais nos sentimos inferiores.

CrençasAs nossas crenças ajudam-nos ou prejudicam-nos?

Creio que a questão fundamental que nos devemos colocar é se as nossas crenças nos transmitem poder ou nos prejudicam, porque é evidente que todos vamos acumulando crenças com o passar dos anos. Ora, para que nos transmitam poder é necessário que tenhamos a coragem de nos questionarmos, de refletirmos sobre a hipótese de algumas das nossas crenças nos impedirem de alcançarmos (ou, pelo menos, explorarmos) todo o nosso potencial, de tomarmos certas decisões, de assumirmos riscos e até de nos negarem a possibilidade de sermos mais felizes.

As crenças determinam grande parte das nossas decisões e comportamentos e, por fim, os nossos atos. É por isso que temos de as colocar em questão, avaliá‑las e desaprendê‑las para que possamos fazer as nossas escolhas conscientemente em vez de nos resignarmos a permanecer, como sempre, condenados a repetir o que já conhecemos, que acabámos por tornar parte de nós por força da repetição.

O peso do passado: uma sentença negativa que impomos a nós próprios

Uma das verdades que o estudo da psicologia humana demonstrou é a necessidade de ter em conta que a história pessoal desempenha um papel fundamental na construção do sentimento de identidade do indivíduo ao ponto de muitas pessoas se sentirem prisioneiras do seu passado, do que lhes aconteceu ou de atos que cometeram e consideram imperdoáveis, apesar de só elas se terem condenado a si próprias. Além disso, o facto de termos cometido um erro não nos invalida para o resto da vida, pois não nos resumimos a esse erro, somos muito mais do que isso.
Muitas pessoas julgam‑se a si próprias por terem cometido um deslize em determinado momento das suas vidas, dão um veredicto negativo a si mesmas e, em consequência disto, obrigam‑se a «cumprir pena» para o resto da vida.

Se queremos ultrapassar esta sentença negativa que, muitas vezes, nos condiciona para sempre, temos de aceitar a mudança, de voltar ao momento da falha, e, se ainda não for demasiado tarde, de nos perdoarmos para podermos seguir com a nossa vida.
Todas as mudanças estáveis e transformadoras assentam na convicção de que o passado não é um fardo que tenhamos de arrastar pelo resto dos nossos dias, mas um rasto que deixamos para trás com as coisas boas e as más. A mudança verdadeira, profunda, só se torna possível quando concedemos esta possibilidade à nossa mente. Mas, para isso, temos de ver o nosso comportamento passado como algo temporário, como uma roupa que nos emprestaram e de que nos podemos libertar, não como um aspeto intrínseco e essencial de nós próprios.

em 10 Segredos para Alcançar o Sucesso, Mónica Esgueva, Self

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Voltar a casa, depois do Irão

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«Recusava-me, pura e simplesmente, a acreditar que existisse de facto um país tão completamente mau. Fui porque estava convencida de que tinha de haver mais qualquer coisa. E porque gosto de ir à procura de santos onde me dizem que há demónios.» Alison Wearing em Lua de Mel no Irão

As minhas viagens nunca começam no dia em que parto. Começam quase sempre no momento em que decido que um dia irei a um determinado lugar.

Às vezes, o tempo que medeia entre a decisão e a partida é curto — um par de meses ou uma mão cheia de semanas. Como aquele Verão em que um namorado fez um estágio nos EUA e fui visitá-lo a Boston. Ou a noite de réveillon em Portugal, em que uma amiga me desafiou a festejar a chegada do ano do Dragão em Pequim. Pouco depois, aterrava na China. São oportunidades que decido agarrar, pretextos para passar algumas semanas em cidades que não eram prioritárias.

Outras vezes, entre o desejo e a concretização da viagem podem passar-se muitos anos. Foi o que aconteceu com o Brasil. Não sei apontar exactamente quando nasceu o sonho de lá ir. Talvez ele já estivesse no meu ADN. Julgo ter sido concebida ao som de uma bossa nova ou de um samba. E se não foi isso que aconteceu, ter desembarcado numa casa onde, para além dos meus pais, viviam Caetano, Betânia, Chico, Tom, Vinícius, Jorge, Erico e José Mauro bastou para marcar o meu destino. Sempre que estudava os Descobrimentos na escola, a ideia de ir ao Brasil era uma borboleta a voltear no meu estômago e quando finalmente lá pus os pés pela primeira vez, aos vinte e dois anos, Salvador da Baía era-me tão familiar que me convenci que já lá estivera noutra vida.

As minhas viagens começam quando uma notícia, um documentário, um filme, uma fotografia, uma música, um livro — quase sempre um livro! — ou até mesmo alguém que admiro me inculca uma imagem na cabeça e começo a ver-me nesse lugar: Stone Town porque lá nasceu Freddy Mercury; Roben Island onde Nelson Mandela esteve preso dezoito anos; São Paulo, para visitar o Museu da Língua Portuguesa; Brasília, por causa da Catedral de Niemeyer; a Cidade Proibida, que me foi apresentada por Bertolucci; as cataratas de Iguaçú por causa da música de Morricone; a Patagónia depois de ler Chatwin; Goa graças a Gonçalo Cadilhe; a Sinagoga dos Portugueses, em Amesterdão, por causa do romance de Yalom; os tenements de Nova Iorque explicados no livro de Augias.

E depois, durante as viagens, quando estou finalmente nos sítios com que tanto sonhei, tenho de fazer um exercício constante de tomada de consciência e dou por mim a repetir mentalmente: “Eu estou aqui. Tenho os pés aqui. Toco nestes muros com as minhas mãos. Respiro este ar. Mergulho nestas águas. Quero recordar para sempre as cores deste quadro, o aroma desta cidade, a musicalidade deste idioma que não entendo, este sabor que demoro a identificar. Experiencio em primeira mão, não há intermediários, fotografias, filmes ou livros. Eu estou aqui”. Procuro manter-me alerta, não deixar escapar nada, demorar-me, diluir-me. E agradecer o privilégio. Tudo foi possível porque persisti no sonho e agi para concretizá-lo. Mas também porque outros factores que não controlo se conjugaram na perfeição. Por isso, agradeço.

As minhas viagens nunca terminam no momento em que chego a casa. Nos primeiros dias acontece-me rejeitar a minha realidade. Não ligo a televisão, não ouço rádio, vou pouco à rua, não quero saber de nada, faço-me bicho do mato. Quando voltei da Argentina, resgatei um velho CD de Andrés Calamaro, que pus a tocar em loop, para que o seu sotaque porteño continuasse a embalar as minhas horas. Depois de Marrocos, condimentei durante meses os pratos mais rudimentares com uma mistura de especiarias para tagines. Regressada da China continuei a comer em tigelas e com pauzinhos. Voltei à Índia nas páginas d’ O Tigre Branco, à África do Sul com Um Longo Caminho Para a Liberdade, ao Brasil a cada romance de Jorge Amado e ao Japão pela mão de Banana Yoshimoto. O meu corpo deixara estes países, mas a minha alma continuava lá.

Decidi em 2001 que visitaria o Irão. Devo-o a Alison Wearing e ao seu livro Lua de Mel no Irão, que comprei por impulso no dia 6 de Agosto daquele ano, atraída pela capa. O que mais retive deste relato de viagem foram as pessoas, o surpreendente povo iraniano que até então era para mim apenas o eco das notícias: uma amálgama de gente ignorante e retrógrada, subjugada pela teocracia islâmica radical que lançara uma fatwa risível contra Salman Rushdie. Alison Wearing, contudo, levou-me a descobrir o Irão para além dessa ponta do icebergue e aguçou-me fatalmente a curiosidade. Uma curiosidade que sobreviveu a quinze anos, um mês e dezoito dias de espera. Aterrei em Teerão na manhã do dia 25 de Setembro de 2016.

Quantas vezes podemos nós alimentar expectativas em relação a um país durante anos, demorar meses a planear e a limar as arestas do roteiro, dissecar guias de viagens, vasculhar sites e blogues com as aventuras dos outros, requisitar livros na biblioteca, ver filmes e fotografias e falar com nativos expatriados, para depois chegar lá e ver as expectativas ultrapassadas? Talvez muito poucas. Mas foi o que me aconteceu. As três semanas que passei no Irão roçaram a perfeição. E não imaginam o quanto fui feliz.

E sim, as paisagens são estarrecedoras; os monumentos, deslumbrantes; a gastronomia, delicada; a mescla das heranças persa e árabe, fascinante. Toda a cultura iraniana, nas suas variadas formas de expressão, é riquíssima, sedutora e naturalmente próxima da portuguesa nalguns aspectos. Mas o que me arrebata são as pessoas. As pessoas para além dos seus líderes políticos e religiosos, da geopolítica, das intrigas internacionais, do petróleo, da energia nuclear, da corrupção. As pessoas que me deram as boas vindas ao Irão todos os dias ao passear pelas ruas, me abriram as portas das suas casas, me serviram chá, me deram de comer e me permitiram ver através dos seus olhos um país que grande parte do mundo teima em distorcer. As pessoas como eu, que vivem o seu dia a dia o melhor que podem e que, tal como eu, só querem ser felizes apesar de tudo.

Mas desta vez o regresso a casa foi diferente. Mal entrei no avião da British Airways que me trouxe de volta, as primeiras palavras que dirigi ao comissário de bordo foram para perguntar se podia tirar o hijab. Depois de levantarmos voo e o sinal do cinto se ter apagado, fugi para a casa de banho numa ânsia de despir a túnica lúgubre comprada em Yazd, que me disfarçava a formas do corpo. E ao chegar a casa liguei o rádio que debita as músicas mais comerciais e lancei-me sobre a televisão, vagueei pelas centenas de canais, voltei às séries do costume e vi vários filmes de enfiada, não sem antes ter saído à rua exibindo as cores garridas que adoro e o cabelo recém lavado, que deixei secar ao ar livre. Desta vez não houve qualquer sentimento de nostalgia ao ver o país afastar-se pela janela do avião, nem me fechei na minha “bolha” ao chegar. Pelo contrário, precisei sofregamente da minha realidade comezinha, do que de mais imediato e fácil ela tem para me oferecer. Sem grandes cogitações, nem filosofias. Apenas alívio.

Tudo nesta vida é discutível. Quiçá, o conceito de liberdade à cabeça. Muitos tratados já foram escritos sobre este tema e muitos outros se seguirão. Os mais cépticos (ou os mais cínicos?) dir-me-ão, por exemplo, que o meu sentimento de liberdade é ilusório. Ser-se-á realmente livre em Portugal? Bem, se compararmos com o que testemunhei no Irão dir-vos-ei sem dúvida que sim. E por que razão me atingiu particularmente a falta de liberdade no Irão se já visitei outros países de povos amordaçados? Talvez porque nunca antes tivesse sentido verdadeiramente o peso da discriminação com base no meu sexo.

Senti-a primeiro no que é mais superficial e visível — o vestuário. Precisaria de mais tempo para experienciar a opressão diária das iranianas para além das camadas de tecido negro que as cobrem. Porém, é ingénuo pensar que o hijab e o chador são apenas roupa. Não são. São o sintoma mais evidente da repressão constante a que as mulheres estão sujeitas por força dos costumes e das leis feitas pelos homens (e tristemente defendidas por uma certa franja de mulheres…). No mínimo o hijab e o chador são um dos muitos sintomas da falta de liberdade de escolha. Que o digam algumas das iranianas que viajaram comigo no avião: preferiram livrar-se dos lenços e acompanharam as suas refeições com um copo de vinho.

Precisamente quinze dias após o meu regresso a Portugal comecei a ler O Menino de Cabul. Sabia que pelo menos parte do romance se passaria no Afeganistão. O que eu não sabia é que estava prestes a voltar ao Irão pelas mãos de Khaled Hosseini. Bastou que mencionasse o mármore de Isfahan, a mesquita de Mashad, o bazar de Teerão e que um personagem se despedisse de alguém com um “Khodafez” — que Deus te guarde — para que um dique se abrisse no meu peito: senti saudades pungentes do Irão! E soube que precisava de escrever este texto.

Sim, o Irão tem muitos demónios. Que país, não os tem? Mas o Irão tem muitos mais santos, santos que para mim têm nomes e rostos muito concretos, santos que eu quero na minha vida. Peço-lhes desculpa pela minha ignorância e arrogância, declaro-lhes o meu fascínio pela sua terra e espero, com humildade, que me abram as portas das suas casas pelo menos mais uma vez. Porque haverá sempre mais qualquer coisa para ver, aprender e compreender melhor.

Quero voltar ao Irão. Hei de voltar ao Irão. Inshallah!
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A liberdade de voar em relação

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Precisamos de colocar rótulos nas relações. Precisamos de lhes dar um nome, de definir o que são, de forma a legitimar as nossas expectativas. O que consideramos ter o direito de esperar de um parceiro é diferente do que consideramos ter o direito de esperar de um amigo, de um marido, do pai de um filho, do irmão, do vizinho… Catalogamos as pessoas que fazem parte do nosso mundo e, segundo a designação que lhe atribuímos, colocamo-las em compartimentos onde fica bem claro para nós o que podemos exigir delas.

Assim que a relação está definida, entramos num encarceramento e na ilusão do garantido. Deixamos de ter liberdade de escolha e de aceitação para passarmos a dar primazia ao compromisso que aparentemente nos une. O compromisso proporciona-nos a certeza incerta de que o outro não vai falhar, pois uma pessoa ‘séria’ é aquela que se predispõe a dar-nos o que é suposto, segundo o rótulo atribuído à relação. Se não o fizer, será acusada de traição. Resumindo: preferimos que o outro esteja sempre presente para satisfazer as nossas expectativas do que estar connosco na livre e consciente escolha de o fazer. Isto porque, se a escolha for mesmo livre, há o grave risco de um dia não nos escolher. E esse dia pode ser já hoje. Como sobreviver a tamanha incerteza?

É preferível viver com a falsa sensação de segurança de que o outro não nos vai abandonar, ou simplesmente nos vai sempre contemplar nas suas escolhas de vida, do que encarar a realidade de que o outro tem o direito, tal como nós, a qualquer momento, de fazer opções que vão numa direção oposta àquela de que gostaríamos.

Paradoxalmente, quando nos permitimos viver na liberdade, há muito mais abertura para um caminho em conjunto saudavelmente duradouro. Na sempre presente liberdade de escolha, respeitamos acima de tudo o compromisso individual connosco próprios, ou seja, de sermos fieis ao que sentimos, razão pela qual não há espaço para condicionamentos. Quando, pelo contrário, nos aprisionamos para que ninguém fuja, mais facilmente surge a vontade de o fazer. No dia em que se concretiza o inevitável inesperado, é com grande surpresa que perguntamos: ‘Como foste capaz?!’

Mas como havemos de pôr em prática esta liberdade quando o ser humano procura constantemente a estabilidade e a segurança? Na verdade, elas não são incompatíveis, mas o nosso medo do abandono é tal que a tendência é procurar a estabilidade de forma destorcida, como tudo o que é fruto do medo: preferimos agarrar do que deixar livre com receio que não volte. Quantas vezes não contrariamos aquilo que sentimos só para agradar, satisfazer e evitar discussões? Quantas vezes não nos traímos a nós próprios para cumprir com uma promessa feita, promessa essa que até poderá ter deixado de fazer sentido, mas que nos recusamos a admitir? Como aceitar e respeitar não só a vontade do outro, mas a nossa também?

Apenas na consciência e na aceitação de que o percurso de vida de cada um é mesmo só de cada um e que os outros existem para nos acompanharem nestas nem sempre fáceis aprendizagens, é que conseguiremos reconhecer, validar e até incentivar que deixemos a porta sempre aberta para voar e explorar mundos. Só assim seremos capazes de construir um terreno seguro, na certeza de que cada um volta simplesmente porque quer e não porque é ‘forçado’. Quando sentimos que a nossa estrutura interna está bem consolidada e que não há ninguém que a possa destruir, nem pela ausência, nem pela presença, então seremos capazes de voar e deixar voar.

Na liberdade as pessoas desejam-se; na autenticidade e aceitação crescem; na vontade genuína voam juntas.
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A casa, está na cabeça ou no coração?

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Quando era miúda e vivia em França, às portas de Paris, tinha uma vizinha chamada Fabienne, pouco mais velha que eu, que habitava um apartamento no último andar do prédio. Fabienne dispunha de duas coisas que eu queria um dia ter também: um cão e um terraço.

O cão acabou por surgir na minha vida, aliás na vida da minha família, por essa altura, na forma de um rafeiro nascido de uma história bonita. A mãe era o bicho de estimação de um casal luso-francês, uma boxer que gostava de vinho do Porto; o pai, um perdigueiro resgatado na ponte 25 de Abril pelo mesmo casal, durante umas férias em Portugal. Chamaram-lhe Tejo. E nós chamámos Tobby ao nosso rafeiro, um nome nem luso, nem francês.

Já o outro sonho teve de esperar muito mais para se materializar. Esperou quase trinta anos. Quis a vida — sempre irónica, sempre a dar com uma mão quando tira com a outra —, que o sonho se concretizasse na pior fase de todas, a do meu divórcio. Foi por isso uma alegria encontrar tão rapidamente este pequeno T1 com terraço. Soube de imediato que era aqui que queria viver, sobretudo depois da antiga proprietária me ter confidenciado, de barriga proeminente, que aqui tinha sido muito feliz.

O que eu não sabia é que a minha condição de ex-doente oncológica me arrastaria para longos meses de batalhas com bancos e seguradoras para fazer valer direitos que o Estado me atribuía para a compra de habitação própria e dos quais nunca quis abdicar, apesar das sugestões asquerosas de algumas entidades bancárias: mentir ou sonegar informação acerca da minha condição clínica às seguradoras que, espantem-se!, lhes pertenciam.

Valeu-me o advogado que trabalhou pro bono no meu caso e a ajuda de uma familiar que aceitou ser minha fiadora. Quando pude finalmente pôr as chaves na porta do apartamento tinha a conta bancária quase a zero, sentia-me revoltadíssima e estava esgotada. Os primeiros meses após a mudança não foram fáceis. Estava zangada com o apartamento. Mas acabei por fazer as pazes. Lembro-me que me senti em casa pela primeira vez no ano seguinte, quando regressei de uma viagem à Patagónia. Senti-me em casa depois de ter ido ao fim do mundo.

De lá para cá, seja em que circunstância for, chegar a casa é uma bênção. Expresso num sussurro o quanto é bom abrir a porta do apartamento e entrar. “Tão bom, tão bom, tão bom…” é normalmente o que digo enquanto pouso a tralha, me descalço e suspiro. É assim que exteriorizo a minha infinita satisfação, a paz e, acima de tudo, a imensa gratidão pelo luxo deste conforto.

Talvez influenciada pela atitude da antiga proprietária, sempre achei que este cantinho com terraço transborda boa energia e a verdade é que, apesar de um ou outro episódio menos bom, tenho sido feliz no meu T1 recheado com muita simplicidade. E acredito, ainda, que a casa me retribui toda a atenção que lhe dispenso, porque sou eu que a limpo, que a arrumo, que a decoro, que até procedo a pequenos arranjos (mesmo que por vezes mal amanhados…) e jardino. Adoro a minha casa e o melhor elogio que me podem fazer é dizerem-me que aqui se sentem bem.

Há umas semanas, no decorrer de um breve curso que fiz na Universidade do Porto, disse-me a professora que o meu arquétipo é claramente o do nómada. Isto não constituiu para mim qualquer surpresa. Sempre o soube. Foi o que me levou a estudar Relações Internacionais, por exemplo. Nessa época de estudante universitária, ganhei uns trocos a dar explicações de inglês a um colega muito mais velho que eu, finalista do curso de Antropologia. Contou que assim que se formasse, pegava numa pequena trouxa e partia para África para viver com uma tribo e estudá-la. E eu ouvia esta história e sonhava fazer o mesmo um dia, pôr uma mochila às costas e partir. Não sei quando me perdi e me desviei desse caminho, distraída com coisas que raramente me fizeram sentir plena.

Curioso é que a nómada que há em mim tenha voltado a despertar quando comprei este T1 em Matosinhos. A nómada que lateja cá dentro é também aquela que está prestes a bater um recorde: nunca antes tinha vivido dez anos na mesma casa! E se nenhuma revolução acontecer na minha vida até ao final deste ano (acreditem que não posso de todo afastar esse cenário…), Matosinhos, que é a oitava cidade onde assentei arraiais, passará a ser oficialmente aquela onde mais tempo vivi. E porém, nunca viajei tanto como nestes últimos dez anos. Este é um daqueles paradoxos que dá mais sabor à vida.

Perguntava-me há pouco tempo um homem se seria capaz de viver num determinado sítio, fora de Portugal. Respondi que ando tão em paz comigo e com o mundo que acho que sou capaz de viver em qualquer lugar. Se for ao lado de uma pessoa de quem gosto, melhor ainda. Fui sincera. Mas se o fizesse, custar-me-ia deixar os meus exíguos domínios em Matosinhos. Ando a desprender-me dos bens materiais, mas este meu espaço vai muito além de mera matéria. Já tem muita história e muitas memórias.

Por isso me pergunto com frequência — afinal onde está a casa: na cabeça (feita de razão, sensatez, segurança e memórias) ou no coração (feita de paixões, impulsos, aventuras e recomeços)? A casa são as paredes e o terraço ou sou eu e aqueles de quem gosto?

Estou, por agora, a tentar ficar com o melhor de dois mundos. Quero ter um pé aqui e outro perdido sei lá onde. Não é fácil. Mas hei de conseguir.

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Amar em viagem

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«A vida é uma viagem: é preciso aprender a conhecer o terreno, escolher uma direção, encontrar bons companheiros e usufruir do itinerário, pois no fim da estrada pode não existir nada.»  – Jonathan Haidt

Vejo muita ansiedade a borbulhar devido ao desejo de se ter uma relação amorosa. Ou porque se tem medo da solidão, ou porque a vida não faz sentido sem intimidade, ou porque se quer partilhar experiências e projetos com alguém em específico, ou porque é simplesmente aborrecido estar-se sozinho… Seja por que motivo for, ter um/a companheiro/a é um objetivo de muita gente. Um objetivo. Conquistado este objetivo, as ansiedades passam a ser outras, pelo que os objetivos mudam, mas mantêm-se.

Alcançada a primeira fase, entramos no registo de querer o outro à nossa imagem e semelhança. Ficamos estupefactos com a falta de semelhanças e a forma do outro pensar (que é diferente da nossa), a forma de sentir (que é diferente da nossa), e a forma de agir (que é diferente da nossa) começa a criar um fosso entre os dois. O que nos distingue e diferencia, em vez de nos enriquecer e aproximar, enfraquece-nos e distancia-nos. O outro, afinal, não é como gostaríamos que fosse: mais dinâmico, mais estável, mais comunicativo, mais sociável, mais criativo, mais romântico, mais emotivo, mais flexível, mais maduro, mais assertivo… enfim, tudo o que não é e provavelmente nunca será. E aqui deixa de nos servir. Já não o queremos. Não satisfaz as nossas necessidades, não encaixa na nossa forma de ser, não nos torna a vida como a sonháramos, pelo que descartamos.

Missão cumprida: procurar, ter, mudar, não serve – descarta. Passamos de objetivo em objetivo como se a vida afetiva fosse uma sucessão de aquisições que deitamos fora quando já não é útil ao nosso propósito.

Nesta correria de consumo de objetivos, onde fica o espaço para viver e apreciar o caminho?

O caminho é feito de desafios imprescindíveis ao nosso crescimento: medos que tentam travar a nossa entrega à experiência; obstáculos que põem à prova a nossa garra em superar o imprevisível; ajudas que nos inspiram a acreditar e a confiar no fluxo da vida; padrões antigos que boicotam essa confiança; testes que nos indicam a que ponto estamos no nosso percurso; feridas antigas que nos condicionam, mas que gritam para cuidarmos delas… Resumindo, ciclos de morte/renascimento com vista a uma consciência mais ampla. Do ponto de vista psicológico e existencial, o sentido da vida é evoluir e crescer, o que não é possível sem estes ingredientes.

E o ingrediente que não poderá faltar neste processo é, de facto, a relação – seja ela amorosa ou não, mas a amorosa potencia cada elemento presente na viagem. É na relação que experienciamos a plenitude da condição humana, pois sem o outro nada acontece dentro de nós, nada é ativado, nada é despertado, nada é sentido. No entanto, ao falarmos de um caminho a dois, além de nós há o outro – e muitas vezes esquecemo-nos disso: respeitar e honrar as diferenças, aceitar com gratidão o que nos proporciona como experiência interior, dar com compaixão, receber com humildade, sem esquecer que não existimos na sua vida para o salvar ou sermos salvos, mas sim para uma evolução como seres humanos.

À luz da evolução, até que ponto nos questionamos acerca do que podemos aprender e crescer com o outro? Quando nos cruzamos, o que é que o outro nos traz como mensagem, desafio, obstáculo, sonho…?

Se o virmos como mero objeto de satisfação das nossas necessidades, perdemos o sentido da sua existência na nossa. Perdemos o caminho, apenas vemos objetivos. Mas é no caminho que está a vida, a aprendizagem, o crescimento, a construção, pois no fim pode não haver nada, como diz Jonathan Haidt. É na exploração da relação, na curiosidade de conhecer as dinâmicas do outro e as nossas, no interesse em aprofundar sentires e crenças, na descoberta de diferenças que nos complementam, que o caminho se torna entusiasmante e construtivo. É num caminho de reciprocidade afetiva que vamos regando e nutrindo a confiança, o vínculo, a intimidade, a partilha, o querer estar, o aprender a falar ou a silenciar.

Entramos na vida uns dos outros para amar, mas no amor não há espaço para dependências, condicionamentos, rótulos, posses, exigências, cobranças, chantagens emocionais, trocas… no amor chega a haver o desejo de ver o outro feliz, mesmo quando não somos incluídos nas suas escolhas. No amor há uma liberdade de escolha sempre presente que anula o tão desejado compromisso, o qual nos dá a falsa segurança de que o outro nos pertence. É na liberdade do caminho que as pessoas se prendem; na prisão dos objetivos sufocam-se e querem-se distantes.

É na liberdade que validamos o que sentimos pelo outro e quando se tenta justificar ou perceber os porquês e os comos corre-se o risco de intoxicar o processo que, por natureza, se traduz num movimento de pulsação cíclico entre a distância e a aproximação. O que nos vincula uns aos outros não está ao alcance da nossa mente racional, mas está ao alcance do nosso coração se ousarmos mergulhar nas águas profundas, obscuras e únicas da viagem com outro ser. E isto é possível quando transmutamos o apego pela conquista do resultado pelo desapego de amar na caminhada.
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Voar alto!

«A obrigação do homem é voar alto, mas sem nunca perder a linha de terra. Temos de ter as duas coisas ao mesmo tempo: ter um chãozinho em baixo, tão objetivo e tão nítido como se fosse um mapa em relevo, e ao mesmo tempo voarmos alto. Uma só das coisas não é humana.» – Agostinho da Silva

Sei, desde muito pequena, que a minha vocação sempre foi voar alto. E quando digo voar alto, não me refiro à vontade de concretizar grandes façanhas, alcançar notoriedade ou riqueza material. No meu íntimo, voar alto sempre significou ser o mais livre possível. Naturalmente, como acontece à maior parte de nós quando crescemos, perdi-me algures pelo caminho e a aguda consciência dessa desorientação acarretou crises existenciais fortíssimas. Levei anos a debater-me entre os ideais que nutria e o trilho contrário que percorria todos os dias, o da vida dita normal: o trabalho por conta de outrem (no qual raramente vi um sentido elevado, porque impera a lógica quase exclusiva do crescimento e do lucro), a rotina embrutecedora, as preocupações mesquinhas, a estúpida ansiedade do status (citando o livro do filósofo Alain de Botton). Tudo me calcava a alma em vez de elevá-la. Deixei de me reconhecer.

Até que um dia adoeci e me vi na cama de um hospital a lutar pela vida. Quando esse processo terminou — não ao fim dos dez meses de internamento e convalescença, mas quase três anos depois (porque a doença não foi a única contrariedade que a vida pôs no meu caminho) — eu tinha percebido o óbvio: até prova em contrário só tenho esta vida e ainda por cima pode ser bem mais curta do que imaginava. E então, sem descurar o “chãozinho”, percebi que tinha chegado o momento de aceitar de uma vez por todas aquela que tinha sido desde sempre a minha verdade: voar alto.

Apostei em novas aprendizagens artísticas, espirituais e desportivas; intensifiquei as leituras, a participação em eventos culturais e as viagens; abri-me aos outros como nunca antes o tinha feito e, mais recentemente, comecei a depurar o meu estilo de vida, policiando com rigor os meus hábitos de consumo. É que nestes dez anos compreendi também que quanto menos escrava for das tralhas que nos intoxicam, menos escrava serei do dinheiro e mais liberdade terei.

A volta ao mundo que fiz em 2014 foi um novo ponto de viragem. Passar seis meses limitada ao conteúdo de uma mochila que carreguei às costas, obrigou-me a viver com muito pouco e a comprar quase nada nos lugares por onde passei. As prioridades eram as deslocações, o alojamento e a alimentação. Para além disso, o meu orçamento estava limitado a dez mil Euros (embora seja possível gastar menos), portanto a concretização do projeto dependeu da boa vontade de muita gente em vários pontos do globo que me recebeu gratuitamente nas suas casas, que me alimentou e que me levou a passear. Esta viagem foi, por isso, um doutoramento na aprendizagem da solidariedade, da confiança e da abertura ao novo e à diferença. A volta ao mundo restabeleceu a minha fé na humanidade. E não só: fez-me ganhar coragem para abrir ainda mais as asas e alcançar outras alturas.

Quando comecei a escrever esta crónica estava em Matosinhos a fazer uma pausa entre dois trabalhos. Agora que a termino estou sentada à mesa de um café no Mindelo, em Cabo Verde, curiosamente o país onde terminou a grande viagem do ano passado. No momento em que era mais do que evidente que a minha vida precisava de uma reviravolta, chegou-me este convite de terras africanas. Vim ganhar metade do que ganhava em Portugal, deixei de ser livreira (uma profissão que adorei) para trabalhar na hotelaria e na restauração (uma área sobre a qual nada sei, estando tudo por aprender), abandonei o meu apartamento para partilhar uma casa, deixei a minha família e os meus amigos para investir numa nova rede de relações sociais e afetivas e troquei o meu país por um que mal conheço. Às vezes acho que enlouqueci.

“Se eu pudesse fazia o mesmo”. Das largas dezenas de pessoas a quem comuniquei a minha decisão ­— familiares, amigos, colegas de trabalho, conhecidos — foram raríssimas as que não me disseram isto. Se pudessem… E depois, o rol de razões pelas quais, supostamente, não podem: o marido, a mulher, os filhos, os pais, a escola, o trabalho, as prestações. Tudo razões aparentemente válidas. Ou serão apenas desculpas? Uma coisa vos digo: seja qual for a vossa verdade, resistam à exclusividade do “chãozinho”.

Abram asas e voem alto. Ainda que dê medo. Eu também tenho medo todos os dias.