
O nosso Ser não se define de forma rigorosa e inflexível. A psique é como uma peça de teatro: temos o guião (a nossa história), o encenador (a consciência) e os personagens (as várias partes que em nós coexistem). Caracterizamo-nos por uma diversificação de identidades, as chamadas subpersonalidades, que ganham vida própria segundo a cena onde se encontram. Parecemos pessoas diferentes consoante o contexto e/ou os interlocutores e, no entanto, somos sempre os mesmos. Somos os mesmos, mas a nossa interação depende do que a outra pessoa ativa em nós. Há pessoas que nos ativam partes de que gostamos e, portanto, nos fazem sentir bem, há outras que nos ativam partes mais inseguras e nos criam desconforto. Das primeiras queremo-nos aproximar, das segundas tendemo-nos a afastar, mas na verdade as relações mais enriquecedoras são aquelas que ativam o variado leque que nos constitui. Uma relação que nos traz crescimento é aquela através da qual encontramos espaço e segurança para explorar, descobrir e viver quem somos na nossa plenitude.
O crescimento físico nem sempre se faz acompanhar por um correspondente crescimento psicológico. Não é a idade nem as experiências da vida que nos fazem amadurecer, mas sim o significado que damos ao mundo exterior e interior através dessas experiências. Há pessoas que já sofreram muito, mas ainda não encontraram um significado aos seus traumas, ainda não integraram a sua dor, ainda vivem na revolta e na zanga. Vão ficando cada vez mais fechadas na crença de que viver é sofrer. Olham para determinadas possibilidades como uma inevitável reabertura de feridas anteriores, rejeitando assim uma reprogramação do sistema neurológico.
Na rejeição à experiência há uma paragem no processo de crescimento. Este implica a abertura a novas vivências que nos alterem a perceção do mundo. Porém, se essas novas vivências reforçam a nossa velha perceção, significa que continuamos a boicotar e a travar o desenvolvimento psicológico. Algo nos impede de avançar: aquela parte de nós que ainda grita por atenção – a nossa criança interior.
As situações que mais nos fazem sofrer são aquelas que tocam numa parte do nosso Self que estagnou algures no tempo. O nosso Ser não cresce todo por igual, tornamo-nos adultos em certas partes, mas não noutras. Quando sentimos o chamado ‘aperto interior’, muito provavelmente é porque a nossa parte infantil foi espicaçada e, como tal, ainda não sabe lidar com o desafio de forma serena e madura. E então grita.
Uma cliente minha com filhos e sobrinhos já independentes, sentia que a sua família não lhe prestava a atenção de que ela gostaria. Considerava que agora que já ninguém precisava dela, não a contactavam com tanta frequência, pelo que a sensação de ‘só me ligam quando precisam’ começou a ganhar cada vez mais terreno. Mais tarde descobrimos que ela se recusava a ter iniciativas para procurar os seus familiares e assim satisfazer as suas necessidades de atenção e afeto pois, a partir da visão do seu Self Infantil ferido, eram os outros que deviam ter essa preocupação e cuidar dela.
Uma necessidade psicológica básica não satisfeita em criança cria-nos um vazio interior que nos leva a um mecanismo de busca constante desse preenchimento através dos outros. Projetamos nas nossas relações mais próximas o papel do cuidador que se ausentou e que nunca mais voltará. Enquanto não ganharmos essa consciência, a busca torna-se infindável e jamais encontrará descanso. Este registo traduz-se numa luta cujo desgaste psicológico é esgotante. Todos nós temos uma parte infantil ferida que grita, mas nem todos lhe dedicamos a atenção merecida.
Uma das minhas feridas tinha a ver com o terror de ser esquecida. Esta ferida criava-me tantas ansiedades que cada vez que fazia uma viagem enviava inúmeras mensagens a quem me esperava no aeroporto para ter a certeza de que a pessoa estava lá. Após um trabalho interior sobre esta dor apercebi-me de que a minha parte infantil magoada não só gritava perante a perceção do mínimo sinal de possibilidade de esquecimento, como cegava toda a dedicação dos outros para que eu me sentisse importante e inesquecível.
É incrível como acabamos por limitar a vivência das relações no reforço da que sempre tivemos. Estamos demasiado encouraçados para ver outras perspetivas, apenas vemos aquela que potencia os nossos medos e inseguranças, provocando consequentemente os habituais padrões de comportamento defensivos. Ao interagir a partir da parte infantil ferida que ainda não integrou a dor, as nossas ações refletem exatamente as de uma criança: grita, esperneia, é incapaz de ver ou ouvir o outro, não tolera a frustração, quer tudo à sua maneira, impõe as suas necessidades e sente o mundo contra si, pois este gira unicamente à sua volta.
Uma criança que precisa de atenção, perante uma plateia de 100 pessoas onde 99 lhe dão o que ela quer, fica perdida naquela única que não lhe liga nenhuma; uma criança que tem o medo do abandono perceciona cada movimento do outro como um risco; uma criança com o receio de ser humilhada evita ao máximo situações onde possa sentir tal ameaça; e por aí fora. Cada um de nós sente e perceciona o mundo hostil a partir das subpersonalidades cujo olhar ainda não se tornou adulto. Quando assim é, esse Self Infantil utiliza os mecanismos que aprendeu para se proteger e evitar que o seu grande medo (abandono, traição, humilhação, etc.) se concretize, não entendendo que ele próprio recria a armadilha de autoboicote.
Recorro frequentemente às palavras de Jung: ‘quando olhamos para fora iludimo-nos, quando olhamos para dentro despertamos’. A valorização do mundo interior é de suma importância na medida em que é aí que se encontra a resposta para os desafios que vivemos. O exterior espelha sempre o nosso interior. Nada nos atinge as entranhas se não tiver o propósito de despertar em nós a criança que grita e necessita de atenção e cuidados para crescer. Queremos ser adultos, maduros e lidar com as situações de forma serena? Não temos alternativa. Não é o exterior que muda, é o nosso interior que aprende a lidar com as situações a nosso favor, para o nosso equilíbrio e serenidade, sem culpa, sem sofrimento, sem rancor.
E como é que se faz para nos tornamos psicologicamente adultos? Não se trata de nos adaptarmos a uma realidade exterior que nos incomoda, muito menos de nos subjugarmos a quem nos desrespeita, antes pelo contrário! O primeiro passo é pegar na situação exterior e estudar o impacto que ela tem em nós, ou seja, conseguir ir além do sentimento de ‘ofensa’ e olhar para o que nos faz sentir. O exterior é a matéria-prima de que dispomos para o autoconhecimento. Identificar, reconhecer, validar e aceitar a nossa realidade interior, sem julgamentos nem repreensões.
Ao ouvirmos a criança a gritar, responder com amor e compaixão. Ela nunca parou de gritar, mas quando se cansou de o fazer para fora através do som, começou a fazê-lo para dentro através do sofrimento. Só com amor e compaixão é que ela começa a ganhar a maturidade de novas hipóteses e de novas visões, a contemplar que há espaço para a dor, para a frustração e para as incertezas da vida. Aí abandonamos a luta e começamos a atrair situações mais adequadas para um Self Adulto responsável, autoconfiante, autoconsciente, autónomo e que sabe cuidar das suas necessidades.
Quando aprendemos a cuidar de nós e largamos a crença de que ainda temos de ser cuidados, começamos a ver no nosso caminho outro tipo de pessoas. Pessoas que nos nutrem, mas sem a expectativa de nos salvarem. Apenas olhando para a verdadeira necessidade escondida por detrás de um padrão defensivo e revoltado é que nos disponibilizamos a crescer e a desfrutar a nossa existência com mais alegria e entusiasmo.
Uma relação em crescimento é aquela que ativa o desconforto do nosso Self Infantil, pois obriga-nos a não nos esquecermos dele, mas, simultaneamente, nos dá o nutrimento necessário para não cairmos no rancor e na amargura. A criança grita, a relação nutre, mas quem cuida somos nós. E só quando aprendemos a cuidar da nossa criança interior ferida, com amor e compaixão, estaremos disponíveis para entrar em relações íntimas enriquecedoras, pautadas pela partilha da plenitude do nosso Ser e pela entreajuda no processo de crescimento, pois só conseguimos dar o que já existe em nós e só conseguimos receber o que a nossa realidade interior perceciona.