
Quando era miúda e vivia em França, às portas de Paris, tinha uma vizinha chamada Fabienne, pouco mais velha que eu, que habitava um apartamento no último andar do prédio. Fabienne dispunha de duas coisas que eu queria um dia ter também: um cão e um terraço.
O cão acabou por surgir na minha vida, aliás na vida da minha família, por essa altura, na forma de um rafeiro nascido de uma história bonita. A mãe era o bicho de estimação de um casal luso-francês, uma boxer que gostava de vinho do Porto; o pai, um perdigueiro resgatado na ponte 25 de Abril pelo mesmo casal, durante umas férias em Portugal. Chamaram-lhe Tejo. E nós chamámos Tobby ao nosso rafeiro, um nome nem luso, nem francês.
Já o outro sonho teve de esperar muito mais para se materializar. Esperou quase trinta anos. Quis a vida — sempre irónica, sempre a dar com uma mão quando tira com a outra —, que o sonho se concretizasse na pior fase de todas, a do meu divórcio. Foi por isso uma alegria encontrar tão rapidamente este pequeno T1 com terraço. Soube de imediato que era aqui que queria viver, sobretudo depois da antiga proprietária me ter confidenciado, de barriga proeminente, que aqui tinha sido muito feliz.
O que eu não sabia é que a minha condição de ex-doente oncológica me arrastaria para longos meses de batalhas com bancos e seguradoras para fazer valer direitos que o Estado me atribuía para a compra de habitação própria e dos quais nunca quis abdicar, apesar das sugestões asquerosas de algumas entidades bancárias: mentir ou sonegar informação acerca da minha condição clínica às seguradoras que, espantem-se!, lhes pertenciam.
Valeu-me o advogado que trabalhou pro bono no meu caso e a ajuda de uma familiar que aceitou ser minha fiadora. Quando pude finalmente pôr as chaves na porta do apartamento tinha a conta bancária quase a zero, sentia-me revoltadíssima e estava esgotada. Os primeiros meses após a mudança não foram fáceis. Estava zangada com o apartamento. Mas acabei por fazer as pazes. Lembro-me que me senti em casa pela primeira vez no ano seguinte, quando regressei de uma viagem à Patagónia. Senti-me em casa depois de ter ido ao fim do mundo.
De lá para cá, seja em que circunstância for, chegar a casa é uma bênção. Expresso num sussurro o quanto é bom abrir a porta do apartamento e entrar. “Tão bom, tão bom, tão bom…” é normalmente o que digo enquanto pouso a tralha, me descalço e suspiro. É assim que exteriorizo a minha infinita satisfação, a paz e, acima de tudo, a imensa gratidão pelo luxo deste conforto.
Talvez influenciada pela atitude da antiga proprietária, sempre achei que este cantinho com terraço transborda boa energia e a verdade é que, apesar de um ou outro episódio menos bom, tenho sido feliz no meu T1 recheado com muita simplicidade. E acredito, ainda, que a casa me retribui toda a atenção que lhe dispenso, porque sou eu que a limpo, que a arrumo, que a decoro, que até procedo a pequenos arranjos (mesmo que por vezes mal amanhados…) e jardino. Adoro a minha casa e o melhor elogio que me podem fazer é dizerem-me que aqui se sentem bem.
Há umas semanas, no decorrer de um breve curso que fiz na Universidade do Porto, disse-me a professora que o meu arquétipo é claramente o do nómada. Isto não constituiu para mim qualquer surpresa. Sempre o soube. Foi o que me levou a estudar Relações Internacionais, por exemplo. Nessa época de estudante universitária, ganhei uns trocos a dar explicações de inglês a um colega muito mais velho que eu, finalista do curso de Antropologia. Contou que assim que se formasse, pegava numa pequena trouxa e partia para África para viver com uma tribo e estudá-la. E eu ouvia esta história e sonhava fazer o mesmo um dia, pôr uma mochila às costas e partir. Não sei quando me perdi e me desviei desse caminho, distraída com coisas que raramente me fizeram sentir plena.
Curioso é que a nómada que há em mim tenha voltado a despertar quando comprei este T1 em Matosinhos. A nómada que lateja cá dentro é também aquela que está prestes a bater um recorde: nunca antes tinha vivido dez anos na mesma casa! E se nenhuma revolução acontecer na minha vida até ao final deste ano (acreditem que não posso de todo afastar esse cenário…), Matosinhos, que é a oitava cidade onde assentei arraiais, passará a ser oficialmente aquela onde mais tempo vivi. E porém, nunca viajei tanto como nestes últimos dez anos. Este é um daqueles paradoxos que dá mais sabor à vida.
Perguntava-me há pouco tempo um homem se seria capaz de viver num determinado sítio, fora de Portugal. Respondi que ando tão em paz comigo e com o mundo que acho que sou capaz de viver em qualquer lugar. Se for ao lado de uma pessoa de quem gosto, melhor ainda. Fui sincera. Mas se o fizesse, custar-me-ia deixar os meus exíguos domínios em Matosinhos. Ando a desprender-me dos bens materiais, mas este meu espaço vai muito além de mera matéria. Já tem muita história e muitas memórias.
Por isso me pergunto com frequência — afinal onde está a casa: na cabeça (feita de razão, sensatez, segurança e memórias) ou no coração (feita de paixões, impulsos, aventuras e recomeços)? A casa são as paredes e o terraço ou sou eu e aqueles de quem gosto?
Estou, por agora, a tentar ficar com o melhor de dois mundos. Quero ter um pé aqui e outro perdido sei lá onde. Não é fácil. Mas hei de conseguir.