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Turistas com telhados de vidro

turistas

Episódio #1

É Agosto e estou em Portimão, no Algarve. Eu e a minha mãe dirigimo-nos cedo para a paragem de autocarros mais próxima de casa. Queremos apanhar o Vai Vem das 8h26 para a Praia da Rocha. Quando chegamos à paragem, cinco ou seis pessoas aguardam já o pequeno autocarro, sentadas nos bancos. São todas da terra e vão trabalhar. Não fazem fila, mas mantemo-nos ambas atentas a quem está à nossa frente para respeitar a ordem de chegada. Depois de nós, chegam mais utentes e começa a formar-se uma fila tímida. Quando o autocarro chega, os utentes que estavam sentados dirigem-se para a porta e toda a gente começa a organizar-se para entrar respeitando a ordem de chegada.

Toda a gente, com exceção de um casal — ele bastante velho, ela nem tanto — que foi o último a chegar ao local, mas tenciona ser o primeiro a entrar no transporte. Perante as suas movimentações bruscas para chegar à porta do autocarro antes dos outros, a minha mãe chama-lhes a atenção para as pessoas que tinham chegado primeiro, ao que a senhora, com ar de espanto, pergunta: “Aqui fazem fila?!” Olho-a de esguelha e respondo “Aqui e em todo o lado” e ouço incrédula a seguinte réplica: “De onde eu venho só se faz fila nos consultórios médicos.” Neste momento toda a gente ouve a conversa, que começa a subir de tom, e ficamos entre o riso e a perplexidade.

O velhote, curvado e com pernas mirradas, aproveita a estupefação geral e, lampeiro, acaba mesmo por ser o primeiro a entrar no autocarro. Mas o resto dos passageiros entra por ordem de chegada e a senhora que acompanhava o velhote é a última a subir, como lhe compete. Não percebi exatamente em que terra só se fazem filas nos consultórios médicos, mas o que era claro é que a senhora falava com uma acentuada pronúncia do norte e um sotaque afrancesado. Ao sentar-se junto do velhote, alardeia que o companheiro é “handicapé” (deficiente, em francês) e que no dia seguinte trará a bengala para ser o primeiro a entrar no autocarro.

Não quis perder tempo a explicar-lhe que teria de fazer fila na mesma e só depois beneficiar dos assentos reservados aos “handicapés”, até porque a senhora rapidamente dispara nova pérola: “Venho para aqui gastar o meu dinheiro para vos dar de comer e sou tratada assim? Para o ano não venho e comem merda!”. Um enorme “Oh!” percorre o autocarro cheio de portimonenses enojados com o que ouvem.

Levanta-se um coro de protestos, muitos abanares de cabeças, críticas veementes àquela atitude deplorável e uma outra passageira, que tinha fisgado o sotaque afrancesado da energúmena, arrisca: “Olhe que eu também já fui emigrante e sei que lá fora se fazem filas em todo o lado”, ao que a possidónia tem a lata de responder “Deve ter sido lá na terra dos arábes (dito assim mesmo, com sotaque afrancesado), que são todos iguais a vocês.” Ainda lhe atiro um “Não só é mal educada como é xenófoba!” e depois o motorista, oriundo do leste da Europa, é que põe ordem na coisa, levantando-se e explicando alto e bom som que nas paragens dos autocarros deve-se fazer uma fila única. “Um atrás do outro, atrás do outro, atrás do outro” diz, enfatizando tudo com as mãos e os braços.

Mais tarde, nessa mesma manhã, e também nos dias seguintes, era ver o suposto handicapé a fazer longas caminhadas no areal da Praia da Rocha, cheio de gás nas pernas e sem bengala.

Episódio #2

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Como sempre, chegamos cedo, eu e a minha mãe. Ainda não são 9h quando pomos os pés no areal deserto e espetamos a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada. As gaivotas dormitam, pousadas, e o silêncio é balsâmico. Depois as horas vão passando e os outros vão chegando. Por volta das 10h30 já estamos rodeadas de gente que também quer espetar a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada, mas que mantém uma distância respeitável em relação a nós porque ainda há espaço.

Mas há quem queira dormir até tarde, e queira chegar à praia por volta do meio-dia e, ainda assim, achar ter direito ao melhor lugar para o espetáculo, qualquer coisa como um assento no fosso da orquestra, ainda que esse lugar não tenha mais de um metro quadrado e a família seja de quatro e haja duas sombrinhas e quatro cadeiras e quatro toalhas para acomodar, mesmo que coladas aos pés ou ao nariz do vizinho, que terá de se amanhar porque a vida é uma selva e só se salvam os chicos-espertos. Tudo isto, ainda que haja 700 metros de areia desocupada para trás, entre o lugar sobrelotado e a falésia… É nessa altura que o arraial se torna insuportável e decidimos levantar âncora.

Pela primeira vez em quase 45 anos de praia (na minha terra ou noutra terra qualquer) vejo uma família, portuguesa com certeza, correr na nossa direção e — sem esperar sequer que nos vestíssemos, sacudíssemos as toalhas e arrumássemos o guarda-sol — pousar toda a sua tralha aos nossos pés. E depois ficam ali especados, de pé, a olhar para nós como quem diz “Então, ainda demoram muito?” Perante a minha expressão de repulsa e indignação, o pai de família olha-me com candura (ou estaria apenas a fazer-se de parvo?) e tem a real lata de me dizer: “Esteja à vontade”. “À vontade estava eu antes de vocês chegarem”, respondo com maus modos e a controlar a vontade de lhe apertar o pescoço.

Percebo, contudo, que se estão a borrifar para o que eu sinto, inebriados pela conquista do dia, quiçá de todas as férias ou até do ano: um mísero lugar ao sol, provavelmente pago a muito custo e onde desfrutarão da delícia que é estar-se promiscuamente entalados entre estranhos.

Episódio #3

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Eu e a minha mãe chegamos, de novo, antes das 9h, ocupamos um lugar na fronteira entre a areia seca e a areia molhada e vamos assistindo à chegada lenta dos outros que, ignorando ostensivamente o gigantesco areal deserto que fica para trás, nos vão espartilhando, espartilhando, espartilhando. A minha mãe faz notar que não vê ninguém de Portimão na praia. Por entre os milhares de caras, não reconhece ninguém. De novo, chega uma família portuguesa de quatro — pai, mãe, filho e filha adolescentes — e decidem montar o estaminé onde achámos que ninguém ousaria instalar-se, por não haver espaço para estender uma toalha sequer. Comento em voz alta: “Olha, agora somos todos primos” e a minha mãe solta um “Isto é inacreditável!”

Pouco depois, quando nos vamos embora, o pater famílias levanta a voz e, tratando a minha mãe por tu, desfere um “Vai-te embora, vai procurar uma praia só para ti!” Antes de notar a falta de respeito para com a minha mãe e a boçalidade do homem, penso no triste exemplo que dá aos filhos.

Estes três episódios são míseros apontamentos no meio de milhares e milhares de outros episódios semelhantes, testemunhados ano após ano por quem vive em locais que despertam o apetite dos turistas nacionais, nomeadamente nas zonas costeiras, sejam elas a sul ou a norte. Quem lá vive o ano inteiro, há muito que suporta comportamentos incivilizados, egoístas e arrogantes de quem arriba por duas semanas em modo veni vidi vici, “e que se lixem os outros, sejam eles da terra ou turistas. Sonhei com isto o ano todo e ninguém me vai estragar as férias a que tenho direito e com tudo a que tenho direito, até porque se não viesse gastar o meu dinheiro os desgraçados que aqui vivem não tinham onde cair mortos”. Um clássico…

E nós, os locais, a observá-los e a fazer do assunto tema de conversa todos os anos, por entre gargalhadas escarninhas, porque demasiadas vezes não conseguimos entender sequer porque sai aquela gente de casa e gasta dinheiro se — apesar do sol garantido, do mar quente e dos dias longos longe do trabalho — chegam a bufar e continuam a bufar durante todas as férias:

descarregam a impaciência nas buzinas dos carros como se ainda estivessem no IC19, reclamam da lentidão nas filas dos supermercados como se ainda estivessem no Continente da Senhora da Hora, aconchegam-se bem uns aos outros nos areais como quem tem saudades do open space onde partilham uma secretária atravancada com os colegas da repartição, disputam mesas em esplanadas e restaurantes como se fossem as últimas coca-colas no deserto e passam parte do dia a rogar pragas por não encontrarem onde estacionar o carro, de preferência à porta da casa alugada ou mesmo junto ao acesso à praia. Incapazes de relaxar, perpetuam o ciclo vicioso stressante, porque é nele que se sentem confortáveis sem que disso tenham consciência. Obviamente, partem a bufar.

Nos idos anos noventa, quando fui de Portimão estudar para Lisboa, era comum ouvir por lá o discurso de que fazer férias no Algarve era demasiado caro para a fraca qualidade oferecida. Muitos portugueses preferiam a costa e as ilhas espanholas, com preços mais acessíveis. Achei sempre piada a essas queixas por parte de quem só tencionava ir ao Algarve duas semanas por ano, quando aos algarvios cabe viver com uma carestia transversal, que demasiadas vezes implica repensar o que se põe na mesa para comer por causa dos preços que quase triplicam em certas épocas do ano.

Apesar do caos urbanístico que dificilmente poderá ser revertido — quem se atreveria a correr a costa sul a buldózer? —, julgo que se percorreu um longo e ascendente caminho no respeitante aos serviços disponibilizados aos turistas (ainda haverá restaurantes sem ementas em português?) e só isso explica que insistam em regressar ao Algarve ano após ano. Mas para quem lá vive os desafios permanecem, e talvez se tenham até agudizado. É por isso que alguns optam por fazer as suas férias longe da costa, em paragens mais pacatas, e muitos se fecham em casa, evitam as praias e os centros das suas cidades, esperando pacientemente pelo desafogo de Setembro.

Não quero com este discurso parecer vingativa, dizer com soberba, aos que agora começam a conviver com hordas de turistas, “bem-vindos ao nosso mundo”. Não, não é isso. Primeiro porque cresci com o turismo de massas à porta de casa e habituei-me a ele; segundo porque não quero cair no erro de diabolizá-lo — o turismo tem, definitivamente, coisas muito boas; terceiro porque o desafio colocado aos lisboetas e aos portuenses é mais exigente: escapadinhas nas cidades fazem-se todo o ano, faça chuva ou faça sol; ir à praia é que nem por isso, o que dá azo a folgas retemperadoras.

Quero, com isto, recordar-lhes que o assunto não é novo em Portugal, nem começou com o advento das companhias aéreas low cost que aterram na Portela e em Pedras Rubras. Quero recordar-lhes que estamos sempre a tempo de corrigir e de melhorar, sobretudo se aprendermos com os erros cometidos pelos que começaram a lidar com este desafio há várias décadas. E, principalmente, quero recordar-lhes que todos nós somos turistas. Julgo, por isso, que será conveniente pormos a mão na consciência, pararmos por uns minutos de criticar os “açambarcadores” que vêm de fora transtornando as nossas rotinas, e pensarmos primeiro sobre a forma como nós, portugueses, nos comportamos enquanto turistas cá dentro.

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Conflito de gerações

ansião

«Porra, isto não pode continuar. Gritou o ancião a fulminar o resto da família ao mesmo tempo que  esbracejava e colérico se levantava do cadeirão frente à TV. Estava pior que uma barata. Resvalava até para a má educação, coisa que jamais permitira a ninguém muito menos a si próprio.

Então o meu neto anda de calças a caírem pelas pernas a baixo, a verem-se-lhe as cuecas, de barba crescida e de boné ao lado, como um marginal, um delinquente? Mas o que é isto? Ao que chegamos?

Olhavam-no com a dose de respeito que o chefe da família merece e ao mesmo tempo com um silencio que manifestava inteiro acordo. É uma ver-go-nha – e todos fizeram sim com a cabeça. A verdade é que ninguém aprovava a caricatura que o rapaz transportava consigo, para onde quer que fosse; para a escola, para a praia ou até num passeio de família. Amanhã vou mete-lo na ordem. Haja disciplina e respeito…

O rapaz passaria lá por casa para levar uns acessórios acústicos que o avô lhe dispensara. O patriarca esperava-o com uma crescente irritação, como se esperasse uma reunião com um credor desonesto ou um herege provocador, a merecer vergastadas ou mesmo fuzilamento.  Aqui  franziu a testa e reconheceu que não chegaria a esse ponto mas, sim, que a lição ficaria na memória do atrevido adolescente. O encontro teria que merecer toda a respeitabilidade inerente ao diálogo entre o mais velho e o mais novo de uma família que se preza, que, por tradição e cultura, preserva a hierarquia e o saber possível. Para tanto proibiu a presença de mais alguém no espaço reservado ao duelo.

Ei-lo que chega; como sempre, desengonçado num disfarce inqualificável, chancela de mau gosto, de desmazelo, de desafio aos mais velhos, à educação implantada e até (perdoem-me) até à civilização ocidental. Assim pensava enquanto com poucas palavras fê-lo sentar-se à sua frente, não num sofá, mas numa cadeira de madeira a uma mesa preta de jogo quadrada que nada tinha no tampo de napa castanha. Guardou um silêncio com toda a certeza de despertar uma reflexão que seria ao mesmo tempo uma forma de estabilização emocional para ambos. Olharam-se nos olhos fixamente, ao mesmo nível, numa expressão fria e desafiadora como dois lutadores de luta livre a centímetros antes do início da peleja. O avô quebrou o silêncio na sua voz grave e solene:

Aqui estamos frente a frente. – Respirou fundo a sublinhar a expectativa – De homem para homem, quero dizer-te que não gosto da maneira como te vestes. Parou para que o eco entrasse na alma do antagonista. Media as palavras antes de o torcer como a mulher a dias torce o esfregão da limpeza. Ia continuar. O jovem, numa expressão angelical, sem revelar temor, preocupação ou aborrecimento levantou delicadamente um dedo. Fala – autorizou o avô.

Pergunto-lhe só de homem para homem… – fez uma pausa abrindo ligeiramente os olhos escuros, perspicazes e inteligentes – … e o avô já me perguntou se gosto da sua maneira de vestir?

O pobre homem esperava tudo menos aquela resposta seca, como soco sem defesa nos queixos do adversário que rodearia sobre os calcanhares e tombaria no solo se aqui não se tratasse apenas de um diálogo. Titubeou ainda quase K.O. – Tens razão pá. E mais não disse. Não tinha para dizer.

Levantou-se com solenidade. O rapaz fez o mesmo. Ambos respiravam fundo. Sorriram ambos e num gesto jovem o velho levantou o braço com a mão aberta que embateu na que o rapaz com o mesmo jeito lhe oferecia.»

Luís Pereira de Sousa