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Voar alto!

«A obrigação do homem é voar alto, mas sem nunca perder a linha de terra. Temos de ter as duas coisas ao mesmo tempo: ter um chãozinho em baixo, tão objetivo e tão nítido como se fosse um mapa em relevo, e ao mesmo tempo voarmos alto. Uma só das coisas não é humana.» – Agostinho da Silva

Sei, desde muito pequena, que a minha vocação sempre foi voar alto. E quando digo voar alto, não me refiro à vontade de concretizar grandes façanhas, alcançar notoriedade ou riqueza material. No meu íntimo, voar alto sempre significou ser o mais livre possível. Naturalmente, como acontece à maior parte de nós quando crescemos, perdi-me algures pelo caminho e a aguda consciência dessa desorientação acarretou crises existenciais fortíssimas. Levei anos a debater-me entre os ideais que nutria e o trilho contrário que percorria todos os dias, o da vida dita normal: o trabalho por conta de outrem (no qual raramente vi um sentido elevado, porque impera a lógica quase exclusiva do crescimento e do lucro), a rotina embrutecedora, as preocupações mesquinhas, a estúpida ansiedade do status (citando o livro do filósofo Alain de Botton). Tudo me calcava a alma em vez de elevá-la. Deixei de me reconhecer.

Até que um dia adoeci e me vi na cama de um hospital a lutar pela vida. Quando esse processo terminou — não ao fim dos dez meses de internamento e convalescença, mas quase três anos depois (porque a doença não foi a única contrariedade que a vida pôs no meu caminho) — eu tinha percebido o óbvio: até prova em contrário só tenho esta vida e ainda por cima pode ser bem mais curta do que imaginava. E então, sem descurar o “chãozinho”, percebi que tinha chegado o momento de aceitar de uma vez por todas aquela que tinha sido desde sempre a minha verdade: voar alto.

Apostei em novas aprendizagens artísticas, espirituais e desportivas; intensifiquei as leituras, a participação em eventos culturais e as viagens; abri-me aos outros como nunca antes o tinha feito e, mais recentemente, comecei a depurar o meu estilo de vida, policiando com rigor os meus hábitos de consumo. É que nestes dez anos compreendi também que quanto menos escrava for das tralhas que nos intoxicam, menos escrava serei do dinheiro e mais liberdade terei.

A volta ao mundo que fiz em 2014 foi um novo ponto de viragem. Passar seis meses limitada ao conteúdo de uma mochila que carreguei às costas, obrigou-me a viver com muito pouco e a comprar quase nada nos lugares por onde passei. As prioridades eram as deslocações, o alojamento e a alimentação. Para além disso, o meu orçamento estava limitado a dez mil Euros (embora seja possível gastar menos), portanto a concretização do projeto dependeu da boa vontade de muita gente em vários pontos do globo que me recebeu gratuitamente nas suas casas, que me alimentou e que me levou a passear. Esta viagem foi, por isso, um doutoramento na aprendizagem da solidariedade, da confiança e da abertura ao novo e à diferença. A volta ao mundo restabeleceu a minha fé na humanidade. E não só: fez-me ganhar coragem para abrir ainda mais as asas e alcançar outras alturas.

Quando comecei a escrever esta crónica estava em Matosinhos a fazer uma pausa entre dois trabalhos. Agora que a termino estou sentada à mesa de um café no Mindelo, em Cabo Verde, curiosamente o país onde terminou a grande viagem do ano passado. No momento em que era mais do que evidente que a minha vida precisava de uma reviravolta, chegou-me este convite de terras africanas. Vim ganhar metade do que ganhava em Portugal, deixei de ser livreira (uma profissão que adorei) para trabalhar na hotelaria e na restauração (uma área sobre a qual nada sei, estando tudo por aprender), abandonei o meu apartamento para partilhar uma casa, deixei a minha família e os meus amigos para investir numa nova rede de relações sociais e afetivas e troquei o meu país por um que mal conheço. Às vezes acho que enlouqueci.

“Se eu pudesse fazia o mesmo”. Das largas dezenas de pessoas a quem comuniquei a minha decisão ­— familiares, amigos, colegas de trabalho, conhecidos — foram raríssimas as que não me disseram isto. Se pudessem… E depois, o rol de razões pelas quais, supostamente, não podem: o marido, a mulher, os filhos, os pais, a escola, o trabalho, as prestações. Tudo razões aparentemente válidas. Ou serão apenas desculpas? Uma coisa vos digo: seja qual for a vossa verdade, resistam à exclusividade do “chãozinho”.

Abram asas e voem alto. Ainda que dê medo. Eu também tenho medo todos os dias.