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Voltar a casa, depois do Irão

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«Recusava-me, pura e simplesmente, a acreditar que existisse de facto um país tão completamente mau. Fui porque estava convencida de que tinha de haver mais qualquer coisa. E porque gosto de ir à procura de santos onde me dizem que há demónios.» Alison Wearing em Lua de Mel no Irão

As minhas viagens nunca começam no dia em que parto. Começam quase sempre no momento em que decido que um dia irei a um determinado lugar.

Às vezes, o tempo que medeia entre a decisão e a partida é curto — um par de meses ou uma mão cheia de semanas. Como aquele Verão em que um namorado fez um estágio nos EUA e fui visitá-lo a Boston. Ou a noite de réveillon em Portugal, em que uma amiga me desafiou a festejar a chegada do ano do Dragão em Pequim. Pouco depois, aterrava na China. São oportunidades que decido agarrar, pretextos para passar algumas semanas em cidades que não eram prioritárias.

Outras vezes, entre o desejo e a concretização da viagem podem passar-se muitos anos. Foi o que aconteceu com o Brasil. Não sei apontar exactamente quando nasceu o sonho de lá ir. Talvez ele já estivesse no meu ADN. Julgo ter sido concebida ao som de uma bossa nova ou de um samba. E se não foi isso que aconteceu, ter desembarcado numa casa onde, para além dos meus pais, viviam Caetano, Betânia, Chico, Tom, Vinícius, Jorge, Erico e José Mauro bastou para marcar o meu destino. Sempre que estudava os Descobrimentos na escola, a ideia de ir ao Brasil era uma borboleta a voltear no meu estômago e quando finalmente lá pus os pés pela primeira vez, aos vinte e dois anos, Salvador da Baía era-me tão familiar que me convenci que já lá estivera noutra vida.

As minhas viagens começam quando uma notícia, um documentário, um filme, uma fotografia, uma música, um livro — quase sempre um livro! — ou até mesmo alguém que admiro me inculca uma imagem na cabeça e começo a ver-me nesse lugar: Stone Town porque lá nasceu Freddy Mercury; Roben Island onde Nelson Mandela esteve preso dezoito anos; São Paulo, para visitar o Museu da Língua Portuguesa; Brasília, por causa da Catedral de Niemeyer; a Cidade Proibida, que me foi apresentada por Bertolucci; as cataratas de Iguaçú por causa da música de Morricone; a Patagónia depois de ler Chatwin; Goa graças a Gonçalo Cadilhe; a Sinagoga dos Portugueses, em Amesterdão, por causa do romance de Yalom; os tenements de Nova Iorque explicados no livro de Augias.

E depois, durante as viagens, quando estou finalmente nos sítios com que tanto sonhei, tenho de fazer um exercício constante de tomada de consciência e dou por mim a repetir mentalmente: “Eu estou aqui. Tenho os pés aqui. Toco nestes muros com as minhas mãos. Respiro este ar. Mergulho nestas águas. Quero recordar para sempre as cores deste quadro, o aroma desta cidade, a musicalidade deste idioma que não entendo, este sabor que demoro a identificar. Experiencio em primeira mão, não há intermediários, fotografias, filmes ou livros. Eu estou aqui”. Procuro manter-me alerta, não deixar escapar nada, demorar-me, diluir-me. E agradecer o privilégio. Tudo foi possível porque persisti no sonho e agi para concretizá-lo. Mas também porque outros factores que não controlo se conjugaram na perfeição. Por isso, agradeço.

As minhas viagens nunca terminam no momento em que chego a casa. Nos primeiros dias acontece-me rejeitar a minha realidade. Não ligo a televisão, não ouço rádio, vou pouco à rua, não quero saber de nada, faço-me bicho do mato. Quando voltei da Argentina, resgatei um velho CD de Andrés Calamaro, que pus a tocar em loop, para que o seu sotaque porteño continuasse a embalar as minhas horas. Depois de Marrocos, condimentei durante meses os pratos mais rudimentares com uma mistura de especiarias para tagines. Regressada da China continuei a comer em tigelas e com pauzinhos. Voltei à Índia nas páginas d’ O Tigre Branco, à África do Sul com Um Longo Caminho Para a Liberdade, ao Brasil a cada romance de Jorge Amado e ao Japão pela mão de Banana Yoshimoto. O meu corpo deixara estes países, mas a minha alma continuava lá.

Decidi em 2001 que visitaria o Irão. Devo-o a Alison Wearing e ao seu livro Lua de Mel no Irão, que comprei por impulso no dia 6 de Agosto daquele ano, atraída pela capa. O que mais retive deste relato de viagem foram as pessoas, o surpreendente povo iraniano que até então era para mim apenas o eco das notícias: uma amálgama de gente ignorante e retrógrada, subjugada pela teocracia islâmica radical que lançara uma fatwa risível contra Salman Rushdie. Alison Wearing, contudo, levou-me a descobrir o Irão para além dessa ponta do icebergue e aguçou-me fatalmente a curiosidade. Uma curiosidade que sobreviveu a quinze anos, um mês e dezoito dias de espera. Aterrei em Teerão na manhã do dia 25 de Setembro de 2016.

Quantas vezes podemos nós alimentar expectativas em relação a um país durante anos, demorar meses a planear e a limar as arestas do roteiro, dissecar guias de viagens, vasculhar sites e blogues com as aventuras dos outros, requisitar livros na biblioteca, ver filmes e fotografias e falar com nativos expatriados, para depois chegar lá e ver as expectativas ultrapassadas? Talvez muito poucas. Mas foi o que me aconteceu. As três semanas que passei no Irão roçaram a perfeição. E não imaginam o quanto fui feliz.

E sim, as paisagens são estarrecedoras; os monumentos, deslumbrantes; a gastronomia, delicada; a mescla das heranças persa e árabe, fascinante. Toda a cultura iraniana, nas suas variadas formas de expressão, é riquíssima, sedutora e naturalmente próxima da portuguesa nalguns aspectos. Mas o que me arrebata são as pessoas. As pessoas para além dos seus líderes políticos e religiosos, da geopolítica, das intrigas internacionais, do petróleo, da energia nuclear, da corrupção. As pessoas que me deram as boas vindas ao Irão todos os dias ao passear pelas ruas, me abriram as portas das suas casas, me serviram chá, me deram de comer e me permitiram ver através dos seus olhos um país que grande parte do mundo teima em distorcer. As pessoas como eu, que vivem o seu dia a dia o melhor que podem e que, tal como eu, só querem ser felizes apesar de tudo.

Mas desta vez o regresso a casa foi diferente. Mal entrei no avião da British Airways que me trouxe de volta, as primeiras palavras que dirigi ao comissário de bordo foram para perguntar se podia tirar o hijab. Depois de levantarmos voo e o sinal do cinto se ter apagado, fugi para a casa de banho numa ânsia de despir a túnica lúgubre comprada em Yazd, que me disfarçava a formas do corpo. E ao chegar a casa liguei o rádio que debita as músicas mais comerciais e lancei-me sobre a televisão, vagueei pelas centenas de canais, voltei às séries do costume e vi vários filmes de enfiada, não sem antes ter saído à rua exibindo as cores garridas que adoro e o cabelo recém lavado, que deixei secar ao ar livre. Desta vez não houve qualquer sentimento de nostalgia ao ver o país afastar-se pela janela do avião, nem me fechei na minha “bolha” ao chegar. Pelo contrário, precisei sofregamente da minha realidade comezinha, do que de mais imediato e fácil ela tem para me oferecer. Sem grandes cogitações, nem filosofias. Apenas alívio.

Tudo nesta vida é discutível. Quiçá, o conceito de liberdade à cabeça. Muitos tratados já foram escritos sobre este tema e muitos outros se seguirão. Os mais cépticos (ou os mais cínicos?) dir-me-ão, por exemplo, que o meu sentimento de liberdade é ilusório. Ser-se-á realmente livre em Portugal? Bem, se compararmos com o que testemunhei no Irão dir-vos-ei sem dúvida que sim. E por que razão me atingiu particularmente a falta de liberdade no Irão se já visitei outros países de povos amordaçados? Talvez porque nunca antes tivesse sentido verdadeiramente o peso da discriminação com base no meu sexo.

Senti-a primeiro no que é mais superficial e visível — o vestuário. Precisaria de mais tempo para experienciar a opressão diária das iranianas para além das camadas de tecido negro que as cobrem. Porém, é ingénuo pensar que o hijab e o chador são apenas roupa. Não são. São o sintoma mais evidente da repressão constante a que as mulheres estão sujeitas por força dos costumes e das leis feitas pelos homens (e tristemente defendidas por uma certa franja de mulheres…). No mínimo o hijab e o chador são um dos muitos sintomas da falta de liberdade de escolha. Que o digam algumas das iranianas que viajaram comigo no avião: preferiram livrar-se dos lenços e acompanharam as suas refeições com um copo de vinho.

Precisamente quinze dias após o meu regresso a Portugal comecei a ler O Menino de Cabul. Sabia que pelo menos parte do romance se passaria no Afeganistão. O que eu não sabia é que estava prestes a voltar ao Irão pelas mãos de Khaled Hosseini. Bastou que mencionasse o mármore de Isfahan, a mesquita de Mashad, o bazar de Teerão e que um personagem se despedisse de alguém com um “Khodafez” — que Deus te guarde — para que um dique se abrisse no meu peito: senti saudades pungentes do Irão! E soube que precisava de escrever este texto.

Sim, o Irão tem muitos demónios. Que país, não os tem? Mas o Irão tem muitos mais santos, santos que para mim têm nomes e rostos muito concretos, santos que eu quero na minha vida. Peço-lhes desculpa pela minha ignorância e arrogância, declaro-lhes o meu fascínio pela sua terra e espero, com humildade, que me abram as portas das suas casas pelo menos mais uma vez. Porque haverá sempre mais qualquer coisa para ver, aprender e compreender melhor.

Quero voltar ao Irão. Hei de voltar ao Irão. Inshallah!
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Vamos dar-lhes música?

música

Ando a habilitar-me. Um dia destes desço do metro com um olho negro ou saio de um autocarro com uma mão marcada no rosto. Se não acontecer pior. Uma vez, houve até uma senhora que, já na rua, me abordou e disse: “Menina, isso um dia corre mal. Mais vale ficar calada.”

Sinceramente, não sei porque ficam as pessoas tão ofendidas comigo. Sou sempre muito educada quando as abordo e os meus pedidos, feitos num tom calmo, incluem expressões de cortesia como, por exemplo: “Não se importa de tirar os pés do assento, por favor?” Por norma, recorro também a um ligeiro sorriso, para deixar claro que venho por bem.

Nestes casos, nunca obtenho resposta. Limitam-se a tirar os pés do assento e mantêm-se em silêncio, de cara enfiada no telemóvel. Houve um único jovem que me pediu desculpa e disse que eu tinha razão. Dessa vez fui eu que fiquei sem palavras. Lembro-me de ter pensado que tinha perdido uma boa oportunidade para usar a expressão de cortesia “por obséquio”, de que gosto tanto. Ele teria percebido. Os outros poderiam ter pensado estar a insultá-los, à laia de “inoque”.*

As coisas azedam verdadeiramente e o tom sobe muitíssimo quando o assunto é a música. Insisto na expressão de cortesia e no sorriso — “Não se importa de usar auriculares ou de desligar a música, por favor?” Porém, neste caso obtenho sempre reações viscerais e, pior!, devolvem-me sistematicamente uma pergunta desconcertante, reveladora de um grau grave de alienação (ou será egoísmo? Ou será má educação? Ou será falta de civismo?): “Mas isto está a incomodar?!”

“Não meu energúmeno adorável, não está a incomodar nadinha. Apenas decidi sair à rua e implicar consigo, porque sim.” É o que me apetece responder. Mas opto pela sinceridade e apelo à consciência do meu interlocutor: “Está a incomodar sim. O que o leva a achar que tem o direito de nos impor a sua música? Já pensou no que aconteceria se todos nós nos comportássemos da mesma maneira e cada um ouvisse alto e bom som a música que lhe apetece? Acha que ia ser agradável?” Em vão… Raras são as vezes que desligam a música ou recorrem a auriculares. Houve quem aumentasse o volume. Houve quem me insultasse. Que tenho “a mania” foi do mais suave que ouvi. Há umas semanas, um jovem retorquiu-me que se usasse auriculares eu ouviria a música na mesma. Caí no erro de lhe explicar que se os auriculares fossem de alguma qualidade isso não aconteceria. Acusou-me de estar a insinuar que ele não tinha dinheiro para comprar auriculares de qualidade.

Nestas circunstâncias nunca sei o que me desorienta mais, se o absoluto desrespeito destas pessoas pelos outros utentes dos transportes públicos, se o pesado silêncio que se faz invariavelmente à minha volta. Nunca ninguém ­— ninguém! — me apoiou nestas iniciativas. O desconforto torna-se palpável, não sabem onde pousar o olhar. Afinal, quem é mais alienado?

As Condições de Utilização de Transportes Coletivos do Porto (STCP), dizem preto no branco, na alínea “h” do Artigo 188º que “Aos passageiros de transportes coletivos é proibido utilizar aparelhos de T.S.F. [vulgo rádio; este código está a precisar de uma atualização urgente…] ou fazer barulho de forma a incomodar os restantes passageiros.” As Condições Gerais de Transporte do Metro do Porto deixam também muito claro na alínea “t” do Artigo 4º, que é proibido “Utilizar aparelhagem sonora, ou fazer ruído, de forma a incomodar os outros clientes no interior dos veículos.” Paralelamente, em 2015 foi publicado no Diário da República um novo diploma que prevê multas até 250 Euros para os utentes de transportes públicos que coloquem os pés nos assentos ou façam barulho que incomode os outros passageiros. Mas quem lê estas letras pequenas? Ninguém, certo? Sobretudo gente que não tem aquela parte do cérebro onde costuma alojar-se o bom senso. Ou porque nasceu sem ela ou porque por falta de uso se desligaram esses circuitos neuronais.

A minha experiência enquanto utente dos transportes públicos no Porto diz-me que não há fiscalização. Já vi elementos das equipas que zelam pela segurança no Metro do Porto e nos STCP passar por utentes em atitudes desordeiras, como as que descrevi, sem fazer qualquer reparo. Não lhes compete? Não querem saber? Dá muito trabalho? Terão medo? A única preocupação é fiscalizar os títulos de transporte. Desde que os tenhamos em dia e validados podemos comportar-nos como animais.

No respeitante aos pés nos assentos ainda não pensei no que podemos fazer. Mas quanto à música ocorreu-me há dias o seguinte: à falta de fiscalização, julgo que podemos todos incorrer numa desobediência civil massiva sem riscos de coimas e proponho que, na presença de alguém a impor-nos a sua música, puxemos todos dos nossos telemóveis e ponhamos a tocar uma melodia bem alto. Mais ou menos como um flash mob.

Heim, que dizem? Não gostam de flash mobs? Gostam mais de ficar calados, é? Bem… Vou então escrever ao Presidente da República. O meu plano b é mais ambicioso: pedir-lhe que apadrinhe uma campanha nacional em prol do civismo. Sugiro desde já as empresas de telecomunicações para principais patrocinadoras da iniciativa.

*Referência ao conto “A Palavra Mágica” de Vergílio Ferreira. Num diálogo alguém usa a palavra “inócuo” que os habitantes da aldeia, por não lhe entenderem o significado, acham ser insultuosa. Deturpam-na e começam a chamar “inoque” uns aos outros quando pretendem ofender-se.

 

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Perigosos cosméticos: nitrosaminas, o que não vemos.

nitrosaminas

As nitrosaminas pertencem ao grupo das aminas aromáticas, e são ingredientes básicos das tintas permanentes para o cabelo. Em experiências com animais  têm-se mostrado cancerígenas. No entanto, não aparecem na lista de ingredientes, mas são criadas a partir da junção e adição de determinadas substâncias que, essas sim, se declaram.

Por exemplo, num sabonete com trietanolamina e o conservante bronopol ou bronidox podem surgir as perigosas nitrosaminas.  Actualmente há na União Europeia 22 aminas aromáticas proibidas para tingir têxteis, mas que podem ser utilizadas na cosmética.

Verificam-se as animas aromáticas em alguns batons, em sombras para os olhos, etc. Evite usar cosméticos dos quais a composição lhe traz dúvidas. Questione sempre o produtor sobre o efeito dos ingredientes que não conhece.

Adaptado do estudo de M.Núnez e C. Navarro

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O resgate

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«Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo.» – José Tolentino Mendonça

Acho que sofro do Síndrome de Estocolmo. Sabem o que é? É o estado psicológico de um indivíduo que, submetido a um período prolongado de intimidação, passa a ter simpatia, amizade ou até sentir amor pelo seu agressor. Sim, acho que é isto… Apesar do afastamento que eu quis com todas as minhas forças e das mudanças que tenho vindo a implementar há mais de um ano, devo admitir que ainda sinto alguma simpatia pelos meus agressores: o tempo e o stress. O tempo tal como o senti, o vivi e o geri nos últimos vinte anos. O stress, que de forma pérfida se me meteu debaixo da pele e se instalou com o epíteto de “o normal”.

Já aqui vos contei que me despedi da empresa onde trabalhei quinze anos. Depois fui despedida do trabalho que aceitei em Cabo Verde. E após essa experiência caricata, mas muitíssimo libertadora, parei para pensar no que andava a fazer e decidi, de uma vez por todas, encarar uma enorme evidência: estava cansada de trabalhar para os outros. Ao fim de duas décadas nesse registo, era chegada a hora de pegar nas minhas poupanças e arriscar investir no meu sonho de autonomia, trabalhando para mim no que me apaixona. Até aqui tudo bem.

O que eu não sabia é que vinte anos de intimidação, isto é, vinte anos a viver, a sentir e a gerir o tempo e o stress observando as regras seguidas pela maioria, me levariam a experienciar volta e meia, após o meu acto de rebelião, sentimentos de culpa e até de traição para com os meus sequestradores. Ridículo, eu sei.

Não me interpretem mal. Não há aqui qualquer arrependimento ou desilusão. Antes pelo contrário. Sei que este é o caminho e que tenho direito a tentar viver de forma diferente. Ando bem, feliz, em paz, a desmultiplicar-me em projectos, actividades, contactos, conhecimentos e aprendizagens apaixonantes (quem diria que o tempo dava para tanta coisa boa ao mesmo tempo!), mas ainda a adaptar-me à falta de correntes. Os meus agressores inculcaram-me ritmos, hábitos dos quais não é assim tão fácil libertar-me.

Só isso explica que continue a fazer as limpezas da casa aos fins de semana, por exemplo, quando hoje em dia posso fazê-las quando me der na veneta, seja quarta ou sexta-feira. E explica também porque insisto em ir ao supermercado ao fim do dia, que é quando lá param todos os que têm de cumprir um horário entre as 9h e as 18h.

Só a memória das grilhetas explicam que me sinta vagamente culpada quando a meio da tarde de uma terça largo o computador e vou caminhar junto ao mar para relaxar, porque a crónica que tenho de entregar está difícil de escrever. Só isso explica aquele mal-estar que dura uma fracção de segundos quando me estendo ao sol num areal em dia de expediente. Só isso explica que ainda me espante com a ousadia que é marcar uma reunião de trabalho numa esplanada ou num café. Só isso justifica a vaga sensação de que estou errada quando tiro quatro dias para descansar na companhia dos meus pais, mesmo sabendo que tenho mil coisas para fazer. Antes marcava as férias para todo o ano em Janeiro, por ordem de uma direcção de recursos humanos. Ironicamente, agora a minha dificuldade é parar sem me sentir mal com isso.

Há dias dei-me conta que não me aborreço por causa de trabalho vai para doze meses, que não chego a casa esgotada e com vontade de chorar, que não me apetece ficar na cama quando o despertador toca entre as 7h e as 8h. Ao aperceber-me disto, a minha primeira reacção foi pensar que devo estar a fazer algo mal. Como posso eu não estar stressada se ainda mal ganho dinheiro e delapido o meu pé de meia todos os meses?! Entrei em parafuso. Achei-me irresponsável, imatura, leviana. O coração disparou e amparei com as mãos suadas a cabeça acometida de uma tontura. Afinal quem sou eu para querer fazer de outra maneira, querer viver diferente? Não será isso arrogância, vaidade? Terei eu capacidade para seguir em frente? Não serei uma fraude?

Mas foi apenas um fogacho, um pensamento perverso que veio e se esfumou num ápice, uma ideia insidiosa que não encontra mais espaço na minha alma nem na minha cabeça para me massacrar, um sintoma ligeiro da Síndrome de Estocolmo que um dia, eu sei, desaparecerá de vez. Aqui, sentada à mesa da sala onde agora desenvolvo parte do meu trabalho, tudo faz sentido. Ao fechar os olhos para ver dentro de mim, tudo faz sentido. Quando vejo o meu rosto e o meu corpo reflectidos num espelho tudo faz sentido. Tudo bate certo. Tudo está em harmonia. Já não há dissonâncias, conflictos internos, medos e inseguranças injustificadas. E à noite, ao deitar-me, passo no teste derradeiro: adormeço de consciência tranquila e durmo profundamente.

Preciso apenas de resgatar a minha relação com o tempo, que há de ser a relação que eu quero, que eu hei de poder negociar e não a que os outros me impõem. Quanto ao stress, aceitá-lo-ei nas doses consideradas saudáveis, como um remédio homeopático, para me manter alerta e focada. E assim, lutarei por cumprir os meus sonhos. E isso, julgo, não é arrogância ou vaidade. É antes equanimidade.
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Turistas com telhados de vidro

turistas

Episódio #1

É Agosto e estou em Portimão, no Algarve. Eu e a minha mãe dirigimo-nos cedo para a paragem de autocarros mais próxima de casa. Queremos apanhar o Vai Vem das 8h26 para a Praia da Rocha. Quando chegamos à paragem, cinco ou seis pessoas aguardam já o pequeno autocarro, sentadas nos bancos. São todas da terra e vão trabalhar. Não fazem fila, mas mantemo-nos ambas atentas a quem está à nossa frente para respeitar a ordem de chegada. Depois de nós, chegam mais utentes e começa a formar-se uma fila tímida. Quando o autocarro chega, os utentes que estavam sentados dirigem-se para a porta e toda a gente começa a organizar-se para entrar respeitando a ordem de chegada.

Toda a gente, com exceção de um casal — ele bastante velho, ela nem tanto — que foi o último a chegar ao local, mas tenciona ser o primeiro a entrar no transporte. Perante as suas movimentações bruscas para chegar à porta do autocarro antes dos outros, a minha mãe chama-lhes a atenção para as pessoas que tinham chegado primeiro, ao que a senhora, com ar de espanto, pergunta: “Aqui fazem fila?!” Olho-a de esguelha e respondo “Aqui e em todo o lado” e ouço incrédula a seguinte réplica: “De onde eu venho só se faz fila nos consultórios médicos.” Neste momento toda a gente ouve a conversa, que começa a subir de tom, e ficamos entre o riso e a perplexidade.

O velhote, curvado e com pernas mirradas, aproveita a estupefação geral e, lampeiro, acaba mesmo por ser o primeiro a entrar no autocarro. Mas o resto dos passageiros entra por ordem de chegada e a senhora que acompanhava o velhote é a última a subir, como lhe compete. Não percebi exatamente em que terra só se fazem filas nos consultórios médicos, mas o que era claro é que a senhora falava com uma acentuada pronúncia do norte e um sotaque afrancesado. Ao sentar-se junto do velhote, alardeia que o companheiro é “handicapé” (deficiente, em francês) e que no dia seguinte trará a bengala para ser o primeiro a entrar no autocarro.

Não quis perder tempo a explicar-lhe que teria de fazer fila na mesma e só depois beneficiar dos assentos reservados aos “handicapés”, até porque a senhora rapidamente dispara nova pérola: “Venho para aqui gastar o meu dinheiro para vos dar de comer e sou tratada assim? Para o ano não venho e comem merda!”. Um enorme “Oh!” percorre o autocarro cheio de portimonenses enojados com o que ouvem.

Levanta-se um coro de protestos, muitos abanares de cabeças, críticas veementes àquela atitude deplorável e uma outra passageira, que tinha fisgado o sotaque afrancesado da energúmena, arrisca: “Olhe que eu também já fui emigrante e sei que lá fora se fazem filas em todo o lado”, ao que a possidónia tem a lata de responder “Deve ter sido lá na terra dos arábes (dito assim mesmo, com sotaque afrancesado), que são todos iguais a vocês.” Ainda lhe atiro um “Não só é mal educada como é xenófoba!” e depois o motorista, oriundo do leste da Europa, é que põe ordem na coisa, levantando-se e explicando alto e bom som que nas paragens dos autocarros deve-se fazer uma fila única. “Um atrás do outro, atrás do outro, atrás do outro” diz, enfatizando tudo com as mãos e os braços.

Mais tarde, nessa mesma manhã, e também nos dias seguintes, era ver o suposto handicapé a fazer longas caminhadas no areal da Praia da Rocha, cheio de gás nas pernas e sem bengala.

Episódio #2

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Como sempre, chegamos cedo, eu e a minha mãe. Ainda não são 9h quando pomos os pés no areal deserto e espetamos a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada. As gaivotas dormitam, pousadas, e o silêncio é balsâmico. Depois as horas vão passando e os outros vão chegando. Por volta das 10h30 já estamos rodeadas de gente que também quer espetar a sombrinha na fronteira entre a areia seca e a areia molhada, mas que mantém uma distância respeitável em relação a nós porque ainda há espaço.

Mas há quem queira dormir até tarde, e queira chegar à praia por volta do meio-dia e, ainda assim, achar ter direito ao melhor lugar para o espetáculo, qualquer coisa como um assento no fosso da orquestra, ainda que esse lugar não tenha mais de um metro quadrado e a família seja de quatro e haja duas sombrinhas e quatro cadeiras e quatro toalhas para acomodar, mesmo que coladas aos pés ou ao nariz do vizinho, que terá de se amanhar porque a vida é uma selva e só se salvam os chicos-espertos. Tudo isto, ainda que haja 700 metros de areia desocupada para trás, entre o lugar sobrelotado e a falésia… É nessa altura que o arraial se torna insuportável e decidimos levantar âncora.

Pela primeira vez em quase 45 anos de praia (na minha terra ou noutra terra qualquer) vejo uma família, portuguesa com certeza, correr na nossa direção e — sem esperar sequer que nos vestíssemos, sacudíssemos as toalhas e arrumássemos o guarda-sol — pousar toda a sua tralha aos nossos pés. E depois ficam ali especados, de pé, a olhar para nós como quem diz “Então, ainda demoram muito?” Perante a minha expressão de repulsa e indignação, o pai de família olha-me com candura (ou estaria apenas a fazer-se de parvo?) e tem a real lata de me dizer: “Esteja à vontade”. “À vontade estava eu antes de vocês chegarem”, respondo com maus modos e a controlar a vontade de lhe apertar o pescoço.

Percebo, contudo, que se estão a borrifar para o que eu sinto, inebriados pela conquista do dia, quiçá de todas as férias ou até do ano: um mísero lugar ao sol, provavelmente pago a muito custo e onde desfrutarão da delícia que é estar-se promiscuamente entalados entre estranhos.

Episódio #3

É Agosto e estou na praia da Rocha, em Portimão. Eu e a minha mãe chegamos, de novo, antes das 9h, ocupamos um lugar na fronteira entre a areia seca e a areia molhada e vamos assistindo à chegada lenta dos outros que, ignorando ostensivamente o gigantesco areal deserto que fica para trás, nos vão espartilhando, espartilhando, espartilhando. A minha mãe faz notar que não vê ninguém de Portimão na praia. Por entre os milhares de caras, não reconhece ninguém. De novo, chega uma família portuguesa de quatro — pai, mãe, filho e filha adolescentes — e decidem montar o estaminé onde achámos que ninguém ousaria instalar-se, por não haver espaço para estender uma toalha sequer. Comento em voz alta: “Olha, agora somos todos primos” e a minha mãe solta um “Isto é inacreditável!”

Pouco depois, quando nos vamos embora, o pater famílias levanta a voz e, tratando a minha mãe por tu, desfere um “Vai-te embora, vai procurar uma praia só para ti!” Antes de notar a falta de respeito para com a minha mãe e a boçalidade do homem, penso no triste exemplo que dá aos filhos.

Estes três episódios são míseros apontamentos no meio de milhares e milhares de outros episódios semelhantes, testemunhados ano após ano por quem vive em locais que despertam o apetite dos turistas nacionais, nomeadamente nas zonas costeiras, sejam elas a sul ou a norte. Quem lá vive o ano inteiro, há muito que suporta comportamentos incivilizados, egoístas e arrogantes de quem arriba por duas semanas em modo veni vidi vici, “e que se lixem os outros, sejam eles da terra ou turistas. Sonhei com isto o ano todo e ninguém me vai estragar as férias a que tenho direito e com tudo a que tenho direito, até porque se não viesse gastar o meu dinheiro os desgraçados que aqui vivem não tinham onde cair mortos”. Um clássico…

E nós, os locais, a observá-los e a fazer do assunto tema de conversa todos os anos, por entre gargalhadas escarninhas, porque demasiadas vezes não conseguimos entender sequer porque sai aquela gente de casa e gasta dinheiro se — apesar do sol garantido, do mar quente e dos dias longos longe do trabalho — chegam a bufar e continuam a bufar durante todas as férias:

descarregam a impaciência nas buzinas dos carros como se ainda estivessem no IC19, reclamam da lentidão nas filas dos supermercados como se ainda estivessem no Continente da Senhora da Hora, aconchegam-se bem uns aos outros nos areais como quem tem saudades do open space onde partilham uma secretária atravancada com os colegas da repartição, disputam mesas em esplanadas e restaurantes como se fossem as últimas coca-colas no deserto e passam parte do dia a rogar pragas por não encontrarem onde estacionar o carro, de preferência à porta da casa alugada ou mesmo junto ao acesso à praia. Incapazes de relaxar, perpetuam o ciclo vicioso stressante, porque é nele que se sentem confortáveis sem que disso tenham consciência. Obviamente, partem a bufar.

Nos idos anos noventa, quando fui de Portimão estudar para Lisboa, era comum ouvir por lá o discurso de que fazer férias no Algarve era demasiado caro para a fraca qualidade oferecida. Muitos portugueses preferiam a costa e as ilhas espanholas, com preços mais acessíveis. Achei sempre piada a essas queixas por parte de quem só tencionava ir ao Algarve duas semanas por ano, quando aos algarvios cabe viver com uma carestia transversal, que demasiadas vezes implica repensar o que se põe na mesa para comer por causa dos preços que quase triplicam em certas épocas do ano.

Apesar do caos urbanístico que dificilmente poderá ser revertido — quem se atreveria a correr a costa sul a buldózer? —, julgo que se percorreu um longo e ascendente caminho no respeitante aos serviços disponibilizados aos turistas (ainda haverá restaurantes sem ementas em português?) e só isso explica que insistam em regressar ao Algarve ano após ano. Mas para quem lá vive os desafios permanecem, e talvez se tenham até agudizado. É por isso que alguns optam por fazer as suas férias longe da costa, em paragens mais pacatas, e muitos se fecham em casa, evitam as praias e os centros das suas cidades, esperando pacientemente pelo desafogo de Setembro.

Não quero com este discurso parecer vingativa, dizer com soberba, aos que agora começam a conviver com hordas de turistas, “bem-vindos ao nosso mundo”. Não, não é isso. Primeiro porque cresci com o turismo de massas à porta de casa e habituei-me a ele; segundo porque não quero cair no erro de diabolizá-lo — o turismo tem, definitivamente, coisas muito boas; terceiro porque o desafio colocado aos lisboetas e aos portuenses é mais exigente: escapadinhas nas cidades fazem-se todo o ano, faça chuva ou faça sol; ir à praia é que nem por isso, o que dá azo a folgas retemperadoras.

Quero, com isto, recordar-lhes que o assunto não é novo em Portugal, nem começou com o advento das companhias aéreas low cost que aterram na Portela e em Pedras Rubras. Quero recordar-lhes que estamos sempre a tempo de corrigir e de melhorar, sobretudo se aprendermos com os erros cometidos pelos que começaram a lidar com este desafio há várias décadas. E, principalmente, quero recordar-lhes que todos nós somos turistas. Julgo, por isso, que será conveniente pormos a mão na consciência, pararmos por uns minutos de criticar os “açambarcadores” que vêm de fora transtornando as nossas rotinas, e pensarmos primeiro sobre a forma como nós, portugueses, nos comportamos enquanto turistas cá dentro.
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A Busca

dia

«So coming back from a journey, or after an illness, before habits had spun themselves across the surface, one felt that same unreality, which was so startling; felt something emerge. Life was most vivid then.» – Virginia Woolf

No meu último dia de trabalho em Portugal, o meu director despediu-se de mim dizendo-me: “Espero que encontres o que procuras”. Não tenho memória do que lhe respondi. Mas registei a ironia daqueles votos feitos sem que soubesse que eu tinha terminado de ler, havia muito pouco tempo, o livro de Miguel Sousa Tavares com o sugestivo título Não se Encontra o que se Procura.

Já se passaram seis meses sobre este episódio — tão breve e aparentemente simples, quando comparado com os reviralhos que vivi recentemente — e ainda assim penso naquelas palavras quase todos os dias: “Espero que encontres o que procuras”. Embora já me tivesse deparado com variantes desta frase — como quando me perguntam o que procuro ao viajar ou quando me atiraram à cara, há umas semanas, um desdenhoso “Vê se decides o que queres da vida” —, surpreendo-me frequentemente enredada no exercício, por um lado estimulante, mas também frustrante e, quem sabe?, inútil de tentar responder à pergunta: ando eu à procura de alguma coisa?

Como as cerejas, a questão trouxe outras questões: na vida, é preciso procurar objectivamente alguma coisa? E é preciso saber nomear essa coisa? E se eu efetivamente andar à procura, mas não souber bem do quê, será isso sinal de pouca inteligência ou, quiçá, de total desnorteio? Desnorteio ou desassossego? E o desassossego é mau? É saudável procurar-se até ao fim da vida? Será mau morrer-se sem se ter achado? Significará isso que a vida foi em vão? Será válido argumentar-se que ao menos se sabe muito bem o que não se procura? Ou poderei escudar-me em Mia Couto que, n’ A Varanda do Frangipani escreve: “O que se encontra nesta vida não resulta de procurarmos”?

Em 1998, numa viagem de avião de Lisboa para La Valetta, em Malta, levava no regaço o livro de Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia. Sentada no outro lado da coxia seguia uma adolescente que lia o mesmo livro. Teria uns 12 anos. Eu tinha 25. Foi nesse trajecto, a dez mil metros de altitude, numa noite de abril iluminada por uma lua cheia memorável, que descobri a mais bela definição de filósofo: alguém que, de acordo com Gaarder, mantém uma infantil capacidade de se espantar com as coisas mais simples. Um pouco como aquele miúdo de seis anos que se extasia perante a visão de um banal cão. E na exclamação que profere — “Olha, um cão!” — há o deslumbramento puro da primeira vez, como se uma misteriosa força da natureza tivesse acabado de criar naquele preciso momento e à frente dos seus olhos, o primeiro exemplar da espécie.

Foi esta explicação de Gaarder que recordei pela enésima vez há umas semanas quando me chegaram por acaso, através de uma newsletter, as palavras de Virginia Woolf com que abro este texto. Daquele pequeno parágrafo e da atitude do filósofo extraio a única coisa que eu sei com toda a certeza que procuro nesta vida: justificar cada novo dia da minha segunda oportunidade aqui.

Nessa procura, evito a sucessão de dias sem distinção e sem memória. Evito a voragem das semanas consumidas pela rotina e pela falta de significado. Como diz Woolf, quero sentir que algo emerge todos os dias, que faço algo memorável acontecer — por muito pequeno que esse algo seja — ou que sou capaz de valorizar um acontecimento menor, um detalhe que à primeira vista poderia ser nada.

Quero “curtir esta trip permanente” (palavras com que o meu irmão descreve a minha postura) que é estar cá e não dar por adquirido o dia de amanhã. E quero, como o filósofo e como as crianças, nunca matar em mim a capacidade de me espantar com o mais simples. Quero, por exemplo, fechar os olhos para sentir melhor a brisa fresca que entra agora mesmo pela janela aberta, a brisa que traz consigo o barulhinho bom da chuva a cair sobre o Mindelo e o cheiro doce a terra molhada. Em Cabo Verde, a chuva é ouro. Para a maioria, é a diferença entre a miséria e um ano remediado.

Daqui a pouco, quando estiver a adormecer, talvez faça deste preciso momento a pequena grande memória do dia.
E tu, já encontraste o que procuras?
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A terceira pausa

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​​​​​​​​​​“Há ciclos de sucesso, quando as coisas vêm até si e prosperam, e ciclos de insucesso, quando elas desaparecem ou se desintegram e você tem de se libertar delas para criar espaço para que surjam coisas novas ou para que a transformação aconteça (…) Não é verdade que o ciclo ascendente seja bom e o descendente seja mau (…) O desaparecimento é necessário para que apareça um novo crescimento. Não pode existir um sem o outro.” – Eckhart Tolle em O Poder do Agora

A primeira pausa aconteceu há quase doze anos. Era a pausa que a minha alma sonhadora pedia há algum tempo, mas que a minha cabeça realista teimava em dizer ser impossível. Acabou por ser o meu corpo sábio a impô-la na forma de um cancro. Foi assim que me vi obrigada a parar dez meses. E que frutos colhi eu dessa experiência?

Aprendizagens para a vida que me servem ainda hoje de farol: o meu corpo é uma máquina maravilhosa e perfeita; adoeço porque, em parte, o permito; embora ache que não, terei sempre força para ultrapassar os piores momentos; o optimismo (ou a fé) é fundamental para superar obstáculos; acreditar que sou capaz de vencer é meio caminho andado para o sucesso; ser paciente é fundamental; por vezes é preciso baixar a guarda e entregarmo-nos aos outros sem reservas, sobretudo aos que nos querem bem e sabem cuidar de nós; devo tirar o melhor partido da situação em que me encontro; não devo dar por adquirido o dia de amanhã; ter sonhos e projectos prolonga a vida; quem tem mãe, tem pai e tem irmão tem tudo.

A primeira pausa foi, portanto, um ciclo descendente apenas na sua aparência. Na verdade, correspondeu a um dos períodos em que mais amadureci. Tornei-me melhor pessoa.

A segunda pausa aconteceu há um ano e meio. Foi a pausa tantos anos sonhada e que persegui com determinação, método e entusiasmo. Foi o maior dos presentes de aniversário. Foi uma volta ao mundo. E o que confirmei eu dessa vez? Que os sonhos mais loucos podem tornar-se realidade se eu for persistente, focada e organizada; que sou capaz de gerir com eficácia um orçamento avultado, sem derrapagens; que posso e sei viver com pouco; que o nosso planeta é deslumbrante; que o mundo não é o que vejo no noticiário das 20h; que é mais aquilo que une os seres humanos do que aquilo que os separa; que há entre nós mais generosidade e compaixão do que egoísmo e ódio; que um sorriso genuíno, um coração sem preconceitos, o respeito pelo outro e uma escuta atenta do que ele tem para nos contar desbravam caminhos em qualquer continente; que preciso dar ouvidos à minha intuição e manter-me atenta aos sinais; que ter medo é bom; que a adrenalina do novo e do desconhecido me faz sentir viva; que parte de mim é nómada e precisa, volta e meia, de pegar na mochila e partir; que há vários pontos do globo onde poderia viver e ser feliz; que a liberdade é mesmo um dos meus valores fundamentais.

A segunda pausa foi, assim, um ciclo claramente ascendente. Um ciclo de sucesso durante o qual muito enriqueci. Tornei-me melhor pessoa.

A terceira pausa aconteceu este ano, entre o início de agosto e meados de outubro. A recente aposta numa aventura profissional em Cabo Verde revelou-se péssima. Foi a pior experiência de trabalho em quase vinte anos de vida no activo. Tudo o resto foi extraordinário, com principal destaque para os conhecimentos e as amizades que fiz entre cabo-verdianos (onde incluo aqueles com quem trabalhei) e expatriados de várias nacionalidades. As pessoas, claro, são sempre o melhor destas experiências e nesse aspecto sou muito abençoada. Mas nesta novela luso-crioula, algumas pessoas foram também o pior.

E o que aprendi eu? Que viver e agir de acordo com os meus valores e preferir deitar-me de consciência tranquila pode acarretar uma pesada factura; que, tal como com as pessoas, se identifico numa instituição valores desalinhados dos meus, devo afastar-me em vez de tentar mudar as coisas sozinha; que desistir, em certas ocasiões, não é um sinal de fraqueza, mas sim de sageza; que devo, de uma vez por todas, dar mais crédito às minhas primeiras impressões, sobretudo quando são más; que preciso ser mais perspicaz na identificação da perversidade e da manipulação para não cair nos seus vórtices aniquiladores; que ser despedida pode provocar uma enorme vontade de rir e não é, de todo, o fim do mundo.

No meu caso, foi um pretexto para parar, recuar, olhar para as minhas circunstâncias de forma abrangente, ponderar hipóteses para o futuro próximo, traçar cenários, tomar decisões, respirar fundo, erguer-me e agir.

A terceira pausa foi, portanto, um bom ciclo descendente. Acredito que me tornei melhor pessoa. E esse caminho está longe de ter chegado ao fim. Cá estarei para continuar a progredir ao ritmo das próximas vitórias e derrotas.
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Tentem um pouco de gentileza

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«Nada pode tornar a nossa vida ou a vida das outras pessoas mais bela do que a perpétua gentileza.» – Lev Tolstoi

Vivo num segundo andar, mas deixei de usar o elevador há alguns anos. Um dia destes, saí de casa para ir ao supermercado e quando descia o último degrau da escadaria que me leva ao rés-do-chão, dei de caras com a porta do elevador que se abria. Saiu de lá um homem, que nunca tinha visto antes, com uma ferramenta qualquer na mão. Depreendi que estivesse a trabalhar no apartamento em obras. Por uma fracção de segundos ficámos face a face e olhámo-nos olhos nos olhos. Não trocámos palavra, o que foi um mau prenúncio. Depois, ele seguiu à minha frente em direcção à porta do edifício e eu fui no seu encalce, dois passos atrás. O homem aproximou-se da porta, abriu-a, saiu, largou-a e deixou-a bater a centímetros do meu nariz.

Fiquei perplexa. E furiosa. Mas decidi não perder a compostura. Abri e fechei a porta com calma, aproximei-me do homem, que se preparava para partir num automóvel, e em voz alta e tom irónico disse-lhe: “Muito obrigada por me ter segurado a porta”. Foi a vez do cavalheiro ficar perplexo. Mas não demorou muito a perceber onde tinha falhado. Pediu-me desculpa como quem me fazia um especial favor. No passeio, gente apercebia-se da cena e abrandava o passo. Insisti: “Isso é que foi simpatia, heim!?”. Aí, o cavalheiro já não gostou. Voltou a pedir-me desculpa, mas com maus modos. Voltei-lhe as costas e segui o meu caminho.

Quando este episódio ocorreu, estava fresca na minha memória uma conversa tida com uma amiga numa tarde de café combinado na baixa. Foi num dos feriados do início de Dezembro e as ruas abarrotavam de turistas deliciados com a beleza da cidade e a simpatia dos portugueses, tão propalada quando falam de nós. Comentávamos o quanto a cidade tinha mudado para melhor, o quanto é bom para os nossos bolsos e para o nosso ego que gente estrangeira se enamore assim do Porto e de Portugal.

Mas a minha amiga insistia numa sensação de dissonância porque, dizia ela, no seu dia a dia, no trato com os seus concidadãos, de igual para igual e sem o deslumbre de uma passagem fugaz pela Invicta, não é simpatia que vê: antes egoísmo, alheamento e descortesia, porque todos nos estamos a fechar cada vez mais nas nossas bolhas e a olhar cada vez mais para os nossos umbigos, ignorando os estranhos que cruzam o nosso caminho. É o clássico “cada um por si” ou a variante “nem reparei”. E que fique claro, raros são os que vivem imunes a este fenómeno. Sou a primeira a dar a mão à palmatória.

Gosto de paradoxos. Instigam-me a olhar para certos aspectos da minha vida e da nossa vida colectiva num constante ir e voltar entre pontos de vista distintos. Ao pensar no que queria escrever neste texto, apercebi-me dum paradoxo muito do nosso tempo: se por um lado, no foro privado, vivemos na convicção de que temos tudo controlado ou na constante tentativa de tudo controlar em prol de uma vida melhor para nós e para a família que amamos, por outro, a nível colectivo, achamos que nada podemos fazer para mudar o mundo para melhor, que isso não está nas nossas mãos e que até os políticos — a quem delegamos essa tarefa por intermédio do voto como quem sacode a água do capote — têm manifestamente pouco poder para tal.

É neste contexto que me deparo com uma promoção fantástica e compro a 5€ um livro que estava na minha lista há três anos: A Revolução do Amor, do filósofo francês Luc Ferry. Sabia em traços gerais ao que ia, mas não podia adivinhar o quanto o livro faria sentido na fase da vida em que me encontro e as contribuições valiosas que tem adicionado às minhas reflexões sobre o “estado das coisas”, reflexões por vezes pontuadas por uma certa desesperança e falta de paciência para os outros. Foi, portanto, por causa de uma promoção que eu, optimista incorrigível que acredita piamente na capacidade individual para mudar o mundo, fui encontrar em Luc Ferry alguém muitíssimo mais optimista quanto ao caminho que a humanidade leva. Este é um dos seus argumentos:

“(…) as experiências mais fortes que vivemos na esfera da intimidade desde a invenção da união familiar amorosa [o autor refere-se ao casamento por amor em oposição ao casamento por conveniência] não nos concentram sobre nós mesmos de forma ‘individualista’ (…) É na verdade precisamente o contrário que se passa. Ainda há pouco, quando, numa família burguesa (…) uma jovem ficava grávida fora do casamento (…) as pessoas apressavam-se a fechar as portas e as janelas, a mentir ao exterior e, se possível, também no interior, para proteger as conveniências. A lógica do amor leva-nos a pouco e pouco até outros horizontes, a outras atitudes, a lógicas de compreensão mais abertas e, por isso mesmo, mais colectivas. Quando uma família conhece um acidente de percurso (…), o mais frequente, hoje em dia, é abrir-se a novas sensibilidades, a alargar mais do que a fechar o horizonte ­— no que o privado se torna cada vez mais um factor de abertura aos outros, portanto à esfera pública e não o inverso.”

Tudo isto para chegar ao que vos quero propor no início deste novo ano: um exercício mais simples, talvez, que o amor (alguns poderão achar estranha esta ideia de sair por aí “amando” desconhecidos), a empatia ou até o civismo (um valor mais abrangente, mais complexo, mais exigente). Proponho-vos que tentemos, no nosso dia a dia, abrirmo-nos a “outros horizontes, a outras atitudes, a lógicas de compreensão mais abertas (…) mais colectivas” sendo genuinamente gentis.

Vamos mudar o mundo ao segurar a porta a quem nos segue, a dar prioridade a pais com crianças ao entrar nos transportes públicos, a cumprimentar o motorista do autocarro, a elogiar o sorriso da menina do supermercado, a agradecer ao automobilista que pára na passadeira, a ceder passagem no trânsito, a desejar bom dia ao vizinho com cara de poucos amigos. Vamos mudar o mundo agradecendo ostensivamente a gentileza dos outros para connosco com sonoros “Obrigada!”, para que percebam o quanto apreciamos o seu gesto, o quanto estamos gratos por essa centelha que não devemos dar por garantida. E vamos mudar o mundo não desmoralizando quando a gentileza é esquecida por alguém ou quando os outros estranharem esta atitude, acharem que somos tolinhos ou mansos e se atreverem até a fazer troça.

A gentileza é altamente contagiosa. Um dia também os descrentes estarão do nosso lado.

Bom ano!

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Voar alto!

«A obrigação do homem é voar alto, mas sem nunca perder a linha de terra. Temos de ter as duas coisas ao mesmo tempo: ter um chãozinho em baixo, tão objetivo e tão nítido como se fosse um mapa em relevo, e ao mesmo tempo voarmos alto. Uma só das coisas não é humana.» – Agostinho da Silva

Sei, desde muito pequena, que a minha vocação sempre foi voar alto. E quando digo voar alto, não me refiro à vontade de concretizar grandes façanhas, alcançar notoriedade ou riqueza material. No meu íntimo, voar alto sempre significou ser o mais livre possível. Naturalmente, como acontece à maior parte de nós quando crescemos, perdi-me algures pelo caminho e a aguda consciência dessa desorientação acarretou crises existenciais fortíssimas. Levei anos a debater-me entre os ideais que nutria e o trilho contrário que percorria todos os dias, o da vida dita normal: o trabalho por conta de outrem (no qual raramente vi um sentido elevado, porque impera a lógica quase exclusiva do crescimento e do lucro), a rotina embrutecedora, as preocupações mesquinhas, a estúpida ansiedade do status (citando o livro do filósofo Alain de Botton). Tudo me calcava a alma em vez de elevá-la. Deixei de me reconhecer.

Até que um dia adoeci e me vi na cama de um hospital a lutar pela vida. Quando esse processo terminou — não ao fim dos dez meses de internamento e convalescença, mas quase três anos depois (porque a doença não foi a única contrariedade que a vida pôs no meu caminho) — eu tinha percebido o óbvio: até prova em contrário só tenho esta vida e ainda por cima pode ser bem mais curta do que imaginava. E então, sem descurar o “chãozinho”, percebi que tinha chegado o momento de aceitar de uma vez por todas aquela que tinha sido desde sempre a minha verdade: voar alto.

Apostei em novas aprendizagens artísticas, espirituais e desportivas; intensifiquei as leituras, a participação em eventos culturais e as viagens; abri-me aos outros como nunca antes o tinha feito e, mais recentemente, comecei a depurar o meu estilo de vida, policiando com rigor os meus hábitos de consumo. É que nestes dez anos compreendi também que quanto menos escrava for das tralhas que nos intoxicam, menos escrava serei do dinheiro e mais liberdade terei.

A volta ao mundo que fiz em 2014 foi um novo ponto de viragem. Passar seis meses limitada ao conteúdo de uma mochila que carreguei às costas, obrigou-me a viver com muito pouco e a comprar quase nada nos lugares por onde passei. As prioridades eram as deslocações, o alojamento e a alimentação. Para além disso, o meu orçamento estava limitado a dez mil Euros (embora seja possível gastar menos), portanto a concretização do projeto dependeu da boa vontade de muita gente em vários pontos do globo que me recebeu gratuitamente nas suas casas, que me alimentou e que me levou a passear. Esta viagem foi, por isso, um doutoramento na aprendizagem da solidariedade, da confiança e da abertura ao novo e à diferença. A volta ao mundo restabeleceu a minha fé na humanidade. E não só: fez-me ganhar coragem para abrir ainda mais as asas e alcançar outras alturas.

Quando comecei a escrever esta crónica estava em Matosinhos a fazer uma pausa entre dois trabalhos. Agora que a termino estou sentada à mesa de um café no Mindelo, em Cabo Verde, curiosamente o país onde terminou a grande viagem do ano passado. No momento em que era mais do que evidente que a minha vida precisava de uma reviravolta, chegou-me este convite de terras africanas. Vim ganhar metade do que ganhava em Portugal, deixei de ser livreira (uma profissão que adorei) para trabalhar na hotelaria e na restauração (uma área sobre a qual nada sei, estando tudo por aprender), abandonei o meu apartamento para partilhar uma casa, deixei a minha família e os meus amigos para investir numa nova rede de relações sociais e afetivas e troquei o meu país por um que mal conheço. Às vezes acho que enlouqueci.

“Se eu pudesse fazia o mesmo”. Das largas dezenas de pessoas a quem comuniquei a minha decisão ­— familiares, amigos, colegas de trabalho, conhecidos — foram raríssimas as que não me disseram isto. Se pudessem… E depois, o rol de razões pelas quais, supostamente, não podem: o marido, a mulher, os filhos, os pais, a escola, o trabalho, as prestações. Tudo razões aparentemente válidas. Ou serão apenas desculpas? Uma coisa vos digo: seja qual for a vossa verdade, resistam à exclusividade do “chãozinho”.

Abram asas e voem alto. Ainda que dê medo. Eu também tenho medo todos os dias.
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Lá fora, o mundo

mundo

Como encontrar o trabalho perfeito. Este é o título de um pequeno livro que li há um par de anos e que embora não me tenha feito revelações bombásticas, sistematiza uma série de factos e ideias de uma forma que achei muito útil. A determinada altura o autor, Roman Krznaric, cita uma ex-engenheira aerospacial que abandonou a NASA para se dedicar ao planeamento urbano. Que reviravolta, não é? Do seu testemunho retive a seguinte frase, que sublinhei a lápis: “(…) o que me facilitou realmente o mudar de carreira foi que nunca me passou pela cabeça limitar-me a uma profissão. Há tantas áreas interessantes, por que razão haveríamos de nos limitar a uma só? Acho que toda a gente se devia despedir pelo menos uma vez na vida”.

Quando li este livro havia mais de um ano que questionava seriamente a minha vida profissional. De tudo, o que mais me angustiava era a certeza de que tinha deixado de aprender coisas realmente novas. E a par disso, a cultura da empresa não me deixava antever grandes possibilidades de progressão. Queria, portanto, mudar. Isso era certo. Mas para onde, para fazer o quê e em que moldes?

Quando exercemos durante muito tempo as mesmas funções num mesmo lugar sofremos de dois efeitos perniciosos: primeiro passamos a achar que não há mais onde trabalhar senão ali; depois julgamos que nunca mais seremos capazes de fazer outra coisa. Se a juntar a isto tivermos a sorte (ou o azar!) de integrar uma empresa sólida e estável, ficamos acomodados e, logo, tolhidos. Como diz um grande amigo meu, “o conforto pode ser uma coisa lixada!”.

Nesta fase da minha vida ter-me-ia dado jeito ler um outro pequeno livro — com o título Como mudar o mundo — onde o autor explica que um dia, para ter uma noção mais concreta das suas aptidões, elaborou uma lista com a sua “experiência profissional, incluindo também aquilo que havia feito apenas como passatempo, trabalho de férias e ainda tarefas desgastantes”. Ironicamente, li o livro e fiz minha lista há poucos dias, depois de me ter despedido pela terceira vez na vida. E confesso que o exercício contribuiu para aumentar bastante a minha autoestima.

Houve momentos em que me senti menor por nunca ter sido uma pessoa orientada para a construção de uma carreira. À minha volta há muita gente empenhada nisso, na carreira. Eu não estou e só há pouco tempo é que me apaziguei com esse facto. Com o facto de me ter deixado vogar ao sabor das oportunidades que surgem e das paixões que estas me espoletam.

Gosto de trabalhar, preciso de trabalhar para me sentir sã e válida e é através do trabalho que consigo duas das coisas que me são mais importantes: aprender continuamente e melhorar enquanto ser humano. Mas, embora trabalhe com brio e empenho até ao último dia, o trabalho nunca foi a minha prioridade. O trabalho é, no que me diz respeito, um meio que me permite alcançar outros fins. E para mim, os outros fins, os que verdadeiramente importam, têm estado sempre fora das quatro paredes de um escritório.

Não me arrependo de ter passado quase quinze anos na mesma empresa. Fui feliz no meu trabalho. E não só. Nesses quase quinze anos casei-me, fiz amigos para a vida, adoeci com uma leucemia, entrei em remissão graças a um autotransplante de medula óssea, divorciei-me, mudei de casa pela 13ª vez, intensifiquei o número de viagens, aprendi a fotografar, criei o Acordo Fotográfico, descobri o prazer da escrita e meti uma licença sem vencimento de seis meses para fazer uma volta ao mundo de mochila às costas.

Depois dessa grande viagem, alguns dos aspetos da minha rotina deixaram de fazer sentido. Como era de esperar, a forma como trabalhava e o estilo de vida que o trabalho implicava — picar o ponto e passar horas a fio entre quatro paredes, sentada na frente um computador — tornaram-se difíceis de suportar. No dia em que assinalei os seis meses do regresso a Portugal, resgatei da estante Projetar a Felicidade, o livro onde Paul Dolan afirma: “(…) enquanto poupar dinheiro para um dia que não chega é triste, desistir da felicidade agora para esperar a felicidade que nunca chega é verdadeiramente trágico”. Demiti-me um mês mais tarde.

Nos próximos textos é sobre tudo isto que quero refletir. Sobre as transformações, as mudanças, os rompimentos que nos permitem renascer e reinventarmo-nos, as viagens e os livros que nos abrem os horizontes, a família e os amigos que são os nossos pilares, os exemplos inspiradores que vêm dos outros e o mundo deslumbrante que, com todos os seus defeitos assustadores, espera por nós lá fora.