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A minha presença no teu tempo

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À beira da morte ninguém quer morrer. Mesmo quem sofre e não encontra sentido à vida, perante uma situação de possível morte o seu instinto de sobrevivência surge com toda a garra. Mas a vida dói. Custa. Ouvi uma entrevista onde se dizia que todos choramos, mas uns choram sozinhos e outros em companhia. Veio-me à memória uma pessoa que, em terapia comigo, de lágrimas no rosto, disse: ‘só consigo chorar aqui, contigo’.

Há quem recorra à psicoterapia porque é o único lugar onde se sente vista, ouvida, reconhecida como um ser importante, especial, com valor. É o único lugar onde alguém está ali para elas, a dedicar 100% da sua atenção, uma hora da própria vida a ouvir as suas histórias, repletas de dor e, algumas vezes, também de alegria. Uma hora da própria vida de que não me arrependo de dar, mesmo se chegando ao leito da minha morte me perguntassem se gostaria de recuperar aquele tempo.

Voltaria a dar o meu tempo àquelas pessoas porque não lhes estou a dar apenas o meu tempo, mas algo que considero muito mais precioso: a minha presença. É uma forma de cuidar do outro e, simultaneamente, de mim. E quando sentimos que cuidamos de nós, também na relação com o outro, não há espaço para arrependimentos. A nossa presença no tempo do outro, no nosso tempo. A presença de estarmos conectados com o nosso interior, com o que sentimos perante os estímulos que nos chegam de fora… como é que a sua história se reflete na minha? Qual o impacto que a sua tristeza e a sua dor têm em mim? Que pensamentos ativam os meus? O que é que isto tudo diz sobre mim? E como posso cuidar disso para crescer e ser um ser humano melhor, mais feliz?

O que é estar com o outro? O que é dedicarmo-nos ao outro? Dizem que o tempo é o bem mais precioso que temos e, por consequência, o maior presente que podemos dar a alguém. O tempo não volta atrás. O tempo não se recupera. O tempo desaparece para sempre. Cada minuto que passa é menos um minuto de vida que temos. Se nos focarmos verdadeiramente na importância que o tempo tem, talvez consigamos usá-lo de forma mais consciente, da forma como queremos viver todos os minutos que nos restam. Para isso temos de estar presentes. Para isso temos de ser presentes. Para isso temos de olhar, viver, sentir o momento presente, o tão badalado ‘aqui e agora’.

Quando nos focamos nas necessidades do outro e lhes damos parte do nosso tempo de vida, vamos exigir-lhe algo em troca, mesmo que inconscientemente. É inevitável. É a expectativa que criamos das relações. Dar para receber. É o mecanismo que conhecemos: ajudar, cumprir com uma obrigação, sermos úteis, caso contrário somos egoístas ou sentimos uma culpa que nos corrói. Mas e o que é estar numa relação onde acima de tudo nos respeitamos a nós próprios, nos valorizamos e nos tratarmos bem? O que é estar com o outro simplesmente porque queremos, porque nos faz bem, porque nos enriquece a alma? O que é estar com o outro sem desculpas, sem favores, sem obrigações, mas simplesmente porque sim?

O que é estar com o outro porque nos queremos pôr em causa e abrir a novos pensamentos, novas sensações e assim alargar o nosso campo de consciência? O que é estar com o outro porque nos faz rir, nos faz refletir, nos faz companhia enquanto choramos? O que é estar com o outro em presença, onde nos olhamos, nos vemos, nos sentimos e assim ficamos? O que é estar com o outro nessa plena liberdade de escolha, fruto exclusivo do nosso desejo e vontade de estar? Aí estamos a dar-nos ao outro e, simultaneamente, a receber porque nos estamos a dar a nós, pelo que deixa de haver espaço para exigências ou carências.

Num registo bastante comum, passamos do querer as coisas depressa, a fazer as coisas à pressa, e ao esperar que o tempo passe… Consumimos o tempo sem a nossa presença, vamos sobrevoando pelas pessoas que se cruzam connosco na vida sem as sentirmos, sem nos sentirmos. O que é estar com alguém que atende um telefone e fica na conversa como se não estivéssemos ali? O que é estar num messenger e receber a mensagem errada porque o outro estava a escrever a mais pessoas?

O que é ouvir uma pergunta repetida porque a nossa resposta não foi ouvida? Qual a presença do outro enquanto diz estar connosco? Que sensação de presença temos quando chegamos a casa e ninguém lê o vazio no nosso olhar? Ou o contrário: o que é estar em relação com alguém em plena ausência? É simplesmente trairmo-nos a nós próprios. É estarmos desligados de nós, é andarmos distraídos da vida, é não usufruir do maravilhoso presente que é o tempo.

A nossa vida, o nosso tempo, sem a nossa presença não tem valor. Estar presente é estar em contacto com o que se passa dentro de nós à medida que vamos acolhendo o que se passa fora de nós. Estar presente é estar conectado consigo próprio e devolver ao outro as nossas sensações, respeitando as ressonâncias internas que se vão tendo neste diálogo entre o exterior e o interior. Estar presente é sentir a nossa presença e a do outro, é entregar-se a esse espaço criado por ambos.

Quantas vezes estamos com alguém e sentimos ter perdido tempo? Para não perder esse tempo é necessário sentir que se ganhou e só se ganha quando sentimos que aquele encontro nos enriquece, nos muda, nos faz pensar, nos faz sentir. Só se ganha quando nos partilhamos, sem desculpas, sem favores, sem justificações, mas simplesmente porque sim. Porque quero estar presente no teu tempo e no meu.
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A criança que grita

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O nosso Ser não se define de forma rigorosa e inflexível. A psique é como uma peça de teatro: temos o guião (a nossa história), o encenador (a consciência) e os personagens (as várias partes que em nós coexistem). Caracterizamo-nos por uma diversificação de identidades, as chamadas subpersonalidades, que ganham vida própria segundo a cena onde se encontram. Parecemos pessoas diferentes consoante o contexto e/ou os interlocutores e, no entanto, somos sempre os mesmos. Somos os mesmos, mas a nossa interação depende do que a outra pessoa ativa em nós. Há pessoas que nos ativam partes de que gostamos e, portanto, nos fazem sentir bem, há outras que nos ativam partes mais inseguras e nos criam desconforto. Das primeiras queremo-nos aproximar, das segundas tendemo-nos a afastar, mas na verdade as relações mais enriquecedoras são aquelas que ativam o variado leque que nos constitui. Uma relação que nos traz crescimento é aquela através da qual encontramos espaço e segurança para explorar, descobrir e viver quem somos na nossa plenitude.

O crescimento físico nem sempre se faz acompanhar por um correspondente crescimento psicológico. Não é a idade nem as experiências da vida que nos fazem amadurecer, mas sim o significado que damos ao mundo exterior e interior através dessas experiências. Há pessoas que já sofreram muito, mas ainda não encontraram um significado aos seus traumas, ainda não integraram a sua dor, ainda vivem na revolta e na zanga. Vão ficando cada vez mais fechadas na crença de que viver é sofrer. Olham para determinadas possibilidades como uma inevitável reabertura de feridas anteriores, rejeitando assim uma reprogramação do sistema neurológico.

Na rejeição à experiência há uma paragem no processo de crescimento. Este implica a abertura a novas vivências que nos alterem a perceção do mundo. Porém, se essas novas vivências reforçam a nossa velha perceção, significa que continuamos a boicotar e a travar o desenvolvimento psicológico. Algo nos impede de avançar: aquela parte de nós que ainda grita por atenção – a nossa criança interior.

As situações que mais nos fazem sofrer são aquelas que tocam numa parte do nosso Self que estagnou algures no tempo. O nosso Ser não cresce todo por igual, tornamo-nos adultos em certas partes, mas não noutras. Quando sentimos o chamado ‘aperto interior’, muito provavelmente é porque a nossa parte infantil foi espicaçada e, como tal, ainda não sabe lidar com o desafio de forma serena e madura. E então grita.

Uma cliente minha com filhos e sobrinhos já independentes, sentia que a sua família não lhe prestava a atenção de que ela gostaria. Considerava que agora que já ninguém precisava dela, não a contactavam com tanta frequência, pelo que a sensação de ‘só me ligam quando precisam’ começou a ganhar cada vez mais terreno. Mais tarde descobrimos que ela se recusava a ter iniciativas para procurar os seus familiares e assim satisfazer as suas necessidades de atenção e afeto pois, a partir da visão do seu Self Infantil ferido, eram os outros que deviam ter essa preocupação e cuidar dela.

Uma necessidade psicológica básica não satisfeita em criança cria-nos um vazio interior que nos leva a um mecanismo de busca constante desse preenchimento através dos outros. Projetamos nas nossas relações mais próximas o papel do cuidador que se ausentou e que nunca mais voltará. Enquanto não ganharmos essa consciência, a busca torna-se infindável e jamais encontrará descanso. Este registo traduz-se numa luta cujo desgaste psicológico é esgotante. Todos nós temos uma parte infantil ferida que grita, mas nem todos lhe dedicamos a atenção merecida.

Uma das minhas feridas tinha a ver com o terror de ser esquecida. Esta ferida criava-me tantas ansiedades que cada vez que fazia uma viagem enviava inúmeras mensagens a quem me esperava no aeroporto para ter a certeza de que a pessoa estava lá. Após um trabalho interior sobre esta dor apercebi-me de que a minha parte infantil magoada não só gritava perante a perceção do mínimo sinal de possibilidade de esquecimento, como cegava toda a dedicação dos outros para que eu me sentisse importante e inesquecível.

É incrível como acabamos por limitar a vivência das relações no reforço da que sempre tivemos. Estamos demasiado encouraçados para ver outras perspetivas, apenas vemos aquela que potencia os nossos medos e inseguranças, provocando consequentemente os habituais padrões de comportamento defensivos. Ao interagir a partir da parte infantil ferida que ainda não integrou a dor, as nossas ações refletem exatamente as de uma criança: grita, esperneia, é incapaz de ver ou ouvir o outro, não tolera a frustração, quer tudo à sua maneira, impõe as suas necessidades e sente o mundo contra si, pois este gira unicamente à sua volta.

Uma criança que precisa de atenção, perante uma plateia de 100 pessoas onde 99 lhe dão o que ela quer, fica perdida naquela única que não lhe liga nenhuma; uma criança que tem o medo do abandono perceciona cada movimento do outro como um risco; uma criança com o receio de ser humilhada evita ao máximo situações onde possa sentir tal ameaça; e por aí fora. Cada um de nós sente e perceciona o mundo hostil a partir das subpersonalidades cujo olhar ainda não se tornou adulto. Quando assim é, esse Self Infantil utiliza os mecanismos que aprendeu para se proteger e evitar que o seu grande medo (abandono, traição, humilhação, etc.) se concretize, não entendendo que ele próprio recria a armadilha de autoboicote.

Recorro frequentemente às palavras de Jung: ‘quando olhamos para fora iludimo-nos, quando olhamos para dentro despertamos’. A valorização do mundo interior é de suma importância na medida em que é aí que se encontra a resposta para os desafios que vivemos. O exterior espelha sempre o nosso interior. Nada nos atinge as entranhas se não tiver o propósito de despertar em nós a criança que grita e necessita de atenção e cuidados para crescer. Queremos ser adultos, maduros e lidar com as situações de forma serena? Não temos alternativa. Não é o exterior que muda, é o nosso interior que aprende a lidar com as situações a nosso favor, para o nosso equilíbrio e serenidade, sem culpa, sem sofrimento, sem rancor.

E como é que se faz para nos tornamos psicologicamente adultos? Não se trata de nos adaptarmos a uma realidade exterior que nos incomoda, muito menos de nos subjugarmos a quem nos desrespeita, antes pelo contrário! O primeiro passo é pegar na situação exterior e estudar o impacto que ela tem em nós, ou seja, conseguir ir além do sentimento de ‘ofensa’ e olhar para o que nos faz sentir. O exterior é a matéria-prima de que dispomos para o autoconhecimento. Identificar, reconhecer, validar e aceitar a nossa realidade interior, sem julgamentos nem repreensões.

Ao ouvirmos a criança a gritar, responder com amor e compaixão. Ela nunca parou de gritar, mas quando se cansou de o fazer para fora através do som, começou a fazê-lo para dentro através do sofrimento. Só com amor e compaixão é que ela começa a ganhar a maturidade de novas hipóteses e de novas visões, a contemplar que há espaço para a dor, para a frustração e para as incertezas da vida. Aí abandonamos a luta e começamos a atrair situações mais adequadas para um Self Adulto responsável, autoconfiante, autoconsciente, autónomo e que sabe cuidar das suas necessidades.

Quando aprendemos a cuidar de nós e largamos a crença de que ainda temos de ser cuidados, começamos a ver no nosso caminho outro tipo de pessoas. Pessoas que nos nutrem, mas sem a expectativa de nos salvarem. Apenas olhando para a verdadeira necessidade escondida por detrás de um padrão defensivo e revoltado é que nos disponibilizamos a crescer e a desfrutar a nossa existência com mais alegria e entusiasmo.

Uma relação em crescimento é aquela que ativa o desconforto do nosso Self Infantil, pois obriga-nos a não nos esquecermos dele, mas, simultaneamente, nos dá o nutrimento necessário para não cairmos no rancor e na amargura. A criança grita, a relação nutre, mas quem cuida somos nós. E só quando aprendemos a cuidar da nossa criança interior ferida, com amor e compaixão, estaremos disponíveis para entrar em relações íntimas enriquecedoras, pautadas pela partilha da plenitude do nosso Ser e pela entreajuda no processo de crescimento, pois só conseguimos dar o que já existe em nós e só conseguimos receber o que a nossa realidade interior perceciona.