
«So coming back from a journey, or after an illness, before habits had spun themselves across the surface, one felt that same unreality, which was so startling; felt something emerge. Life was most vivid then.» – Virginia Woolf
No meu último dia de trabalho em Portugal, o meu director despediu-se de mim dizendo-me: “Espero que encontres o que procuras”. Não tenho memória do que lhe respondi. Mas registei a ironia daqueles votos feitos sem que soubesse que eu tinha terminado de ler, havia muito pouco tempo, o livro de Miguel Sousa Tavares com o sugestivo título Não se Encontra o que se Procura.
Já se passaram seis meses sobre este episódio — tão breve e aparentemente simples, quando comparado com os reviralhos que vivi recentemente — e ainda assim penso naquelas palavras quase todos os dias: “Espero que encontres o que procuras”. Embora já me tivesse deparado com variantes desta frase — como quando me perguntam o que procuro ao viajar ou quando me atiraram à cara, há umas semanas, um desdenhoso “Vê se decides o que queres da vida” —, surpreendo-me frequentemente enredada no exercício, por um lado estimulante, mas também frustrante e, quem sabe?, inútil de tentar responder à pergunta: ando eu à procura de alguma coisa?
Como as cerejas, a questão trouxe outras questões: na vida, é preciso procurar objectivamente alguma coisa? E é preciso saber nomear essa coisa? E se eu efetivamente andar à procura, mas não souber bem do quê, será isso sinal de pouca inteligência ou, quiçá, de total desnorteio? Desnorteio ou desassossego? E o desassossego é mau? É saudável procurar-se até ao fim da vida? Será mau morrer-se sem se ter achado? Significará isso que a vida foi em vão? Será válido argumentar-se que ao menos se sabe muito bem o que não se procura? Ou poderei escudar-me em Mia Couto que, n’ A Varanda do Frangipani escreve: “O que se encontra nesta vida não resulta de procurarmos”?
Em 1998, numa viagem de avião de Lisboa para La Valetta, em Malta, levava no regaço o livro de Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia. Sentada no outro lado da coxia seguia uma adolescente que lia o mesmo livro. Teria uns 12 anos. Eu tinha 25. Foi nesse trajecto, a dez mil metros de altitude, numa noite de abril iluminada por uma lua cheia memorável, que descobri a mais bela definição de filósofo: alguém que, de acordo com Gaarder, mantém uma infantil capacidade de se espantar com as coisas mais simples. Um pouco como aquele miúdo de seis anos que se extasia perante a visão de um banal cão. E na exclamação que profere — “Olha, um cão!” — há o deslumbramento puro da primeira vez, como se uma misteriosa força da natureza tivesse acabado de criar naquele preciso momento e à frente dos seus olhos, o primeiro exemplar da espécie.
Foi esta explicação de Gaarder que recordei pela enésima vez há umas semanas quando me chegaram por acaso, através de uma newsletter, as palavras de Virginia Woolf com que abro este texto. Daquele pequeno parágrafo e da atitude do filósofo extraio a única coisa que eu sei com toda a certeza que procuro nesta vida: justificar cada novo dia da minha segunda oportunidade aqui.
Nessa procura, evito a sucessão de dias sem distinção e sem memória. Evito a voragem das semanas consumidas pela rotina e pela falta de significado. Como diz Woolf, quero sentir que algo emerge todos os dias, que faço algo memorável acontecer — por muito pequeno que esse algo seja — ou que sou capaz de valorizar um acontecimento menor, um detalhe que à primeira vista poderia ser nada.
Quero “curtir esta trip permanente” (palavras com que o meu irmão descreve a minha postura) que é estar cá e não dar por adquirido o dia de amanhã. E quero, como o filósofo e como as crianças, nunca matar em mim a capacidade de me espantar com o mais simples. Quero, por exemplo, fechar os olhos para sentir melhor a brisa fresca que entra agora mesmo pela janela aberta, a brisa que traz consigo o barulhinho bom da chuva a cair sobre o Mindelo e o cheiro doce a terra molhada. Em Cabo Verde, a chuva é ouro. Para a maioria, é a diferença entre a miséria e um ano remediado.
Daqui a pouco, quando estiver a adormecer, talvez faça deste preciso momento a pequena grande memória do dia.
E tu, já encontraste o que procuras?