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Gostar de mim

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‘Já percebi a importância de me pôr em primeiro lugar, de me amar e cuidar de mim, de me proteger e me nutrir de forma a fortalecer a minha autoestima, mas ainda não percebi como se faz.’ Este é o tipo de frase que oiço com frequência quando falamos no desejo de nos sentirmos bem connosco próprios e, consequentemente, na relação com os outros.

Costumo perguntar: ‘O que farias se a pessoa que mais amas na vida se encontrasse na situação em que sentes que devias pôr-te em primeiro lugar e não sabes como?’ Dou como exemplo uma pessoa que facilmente se repreende a si própria quando algo não corre como ela acha que devia ter corrido: ‘correu mal porque não me esforcei o suficiente, porque estava nervosa, porque não fui assertiva, porque sou insegura e não controlei as minhas emoções…’. Da autoagressão oscila para uma agressão externa: ‘se ele não me tivesse falado daquela forma eu não teria ficado nervosa; se ele tivesse sido amável e atento, eu teria dado a volta’, etc. Quer num caso, quer noutro, com este tipo de leitura estamos a fazer o contrário de cuidarmos de nós. A crítica, o julgamento, a repreensão e a culpa estão no oposto da aceitação, do perdão e da compaixão.

Se o teu filho, o teu companheiro, o teu amigo, o teu irmão – imagina a pessoa que mais amas neste mundo – experienciasse o mesmo tipo de situação, o que lhe dirias? ‘Que não faz mal, que talvez da próxima corra melhor e que estarei sempre aqui para ele, aconteça o que acontecer’. Porque não dizemos isso a nós próprios? Porque somos tão críticos e exigentes connosco quando conseguimos ser tão amorosos com o outro?

Colocarmo-nos em primeiro lugar, olhar para o que sentimos e pensamos antes de olharmos para o outro, não é um ato de egoísmo. É um ato de amor. Para connosco e para com o outro. Colocarmo-nos em primeiro lugar no que se refere a cuidarmos de nós e nutrirmo-nos é, antes de mais, assumir a responsabilidade da própria vida e desresponsabilizar o outro de o fazer. Ninguém tem a obrigação de satisfazer as nossas necessidades, ninguém tem a obrigação de nos compreender e resolver os nossos problemas. Partir desse princípio é importante para relações saudáveis, adultas, de genuinidade e liberdade. Se o outro quiser cuidar de nós que o faça porque nos ama e isso lhe dá prazer, não porque pedimos e/ou exigimos. Em crianças era obrigação dos pais zelar pelo nosso bem-estar psicofísico, em adultos somos nós a ter a honra dessa tarefa.

Em termos práticos, o que é que isso significa? Tracy McMillan, numa TedEx que muito me inspira para esta temática, baseia-se nos votos de um casamento tradicional para expor o que é casar-se consigo próprio, o que é tornarmo-nos a pessoa mais importante da nossa vida:

Prometo amar-te e respeitar-te…

  • Na alegria e na tristeza: quando estamos alegres gostamos de nós e apreciamos o nosso humor; e quando estamos tristes? Será que nos mimamos, nos respeitamos ou, pelo contrário, procuramos uma fuga ao que sentimos?
  • Na saúde e na doença: quando estamos bem somos funcionais, mas quando estamos doentes quantas vezes nos irritamos, nos desrespeitamos (até vamos trabalhar com febre)? Quantas vezes chegamos a dormir pouco por falta de tempo, a comer mal por impaciência, a adiar uma ida à casa-de-banho para não interromper uma tarefa? Como cuidamos do nosso corpo, o templo que habitamos?
  • Na riqueza e na pobreza: nos sucessos e nos fracassos, será que festejamos ambos como passos num percurso de aprendizagem e crescimento? Será que nos sentimos gratos pelo que temos ou vivemos na insatisfação do que não temos?
  • Todos os dias da nossa vida até que a morte nos separe: será que nos amamos hoje e todos os dias, independentemente das circunstâncias, como gostaríamos de ser amados? Será que nos aceitamos hoje, tal como somos, no que são as nossas potencialidades e vulnerabilidades, com as nossas forças e os nossos medos?

Uma relação de compromisso connosco próprios não é uma questão de experimentar para ver se funciona: os princípios do respeito, da aceitação, da proteção, do cuidado e da nutrição emocional devem ser a nossa prioridade sempre, tal como gostaríamos que os outros fizessem connosco. Numa situação que nos provoca dor ou desconforto, responder a determinadas questões pode servir de orientação:

  • Estou consciente do que o outro me faz sentir?
  • Na resposta que dou à situação, estou a respeitar-me?
  • Estou a proteger-me?
  • Estou a identificar as minhas necessidades?
  • Estou a cuidar de mim e a nutrir-me?

Colocar-se em primeiro lugar, na sequência de sentirmos que a nossa vida tem valor e merece ser honrada, faz desvanecer sentimentos de culpa – o foco deixa de ser ‘magoar o outro’ e passa a ser ‘cuidar de nós’ (como faríamos com o ser que mais amamos) – e faz aumentar a nossa autoestima – ao cuidarmos de nós sentimos que temos valor, pelo que o ciclo se autorreforça.

Enquanto nos movimentarmos na vida em busca de sermos amados pelo outro, como se tivéssemos um vazio possível de ser colmatado apenas pelo amor de outra pessoa, vamos focar a nossa atenção em satisfazer as suas necessidades na esperança que nos ame e satisfaça as nossas. Se, pelo contrário, focarmos a nossa atenção em nós, numa atitude de curiosidade e exploração do que (não) gostamos, do que (não) faz sentido, do que (não) queremos, então tornamo-nos os protagonistas da nossa história.

Quando nos sentimos os verdadeiros protagonistas da nossa história, deixa de interessar se o outro gosta de nós, pois o que interessa é se nós gostamos do outro. Não interessa o que é nós lhe fazemos sentir, mas o que ele nos faz sentir a nós. A nossa escolha será tanto mais genuína e nutridora quanto livre de expectativas e medos: ‘quero uma relação contigo porque gosto do que sinto na tua presença’ é diferente de ‘preciso de estar contigo porque sem ti fico perdido e vazio’. No primeiro caso há liberdade, no segundo há dependência. E enquanto houver dependência não há espaço para uma relação de partilha.

Cuidarmos de nós porque gostamos mesmo de quem somos, numa primeira fase, é excluir o outro da equação, para depois o incluir na partilha. As relações são o que de mais importante temos na vida, mas a primeira relação a dar atenção e a acarinhar é aquela que temos connosco próprios, pois as outras vão apenas ser uma consequência desta. Quando gostamos de nos fazer companhia, quando nos apaixonamos pelo processo de autoamor, quando vemos o outro por aquilo que ele é – e não em função do que queremos que nos dê –, então estamos a tratar-nos bem.

No entanto, deixo um alerta! Ficarmos pela paixão por nós próprios pode-nos fazer cair na armadilha do narcisismo, em que vemos o mundo apenas em função de nós. Conseguir ir além é entrar na partilha de quem somos (não do que fazemos), pois é na vulnerabilidade do nosso ser que se cria o vínculo e a possibilidade de uma relação saudável.

www.rossana-appolloni.pt

Fotografia de Bernardo Conde www.bernardoconde.com

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Observar, sentir e ser em relação

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Uma vida com sentido só é possível quando somos capazes de escrever a nossa própria história, quando conseguimos dar primazia ao que pensamos e sentimos em vez de a dar ao outro, quando tomamos decisões coerentes com a nossa essência, quando reconhecemos e respeitamos a nossa natureza, quando valorizamos o nosso potencial e o tentamos manifestar no mundo, quando honramos as nossas necessidades e desejos, quando mergulhamos em relações que nos nutrem e reforçam todas as capacidades individuais. Manter a própria autonomia numa relação traduz-se em preservar a própria identidade, ao contrário de a perder no outro. E isso só é possível através de um autoconhecimento profundo.

Conhecer-se é ser capaz de identificar o que é nosso e o que é do outro, é ter a consciência do que pensamos e sentimos durante a interação com alguém. Se tivermos uma consciência muito presente do que somos, de onde estamos e do que queremos para a nossa vida, em lugar de nos afogarmos ao mergulhar no oceano das relações, sentimos o prazeroso contacto com a água e a transformação que se dá em nós através dessa experiência.

Os outros fazem parte da nossa existência. Seria terrível se o nosso falso desejo de estar numa ilha deserta, em paz, se concretizasse. Somos seres sociais por natureza, desde sempre. É com os amigos que potenciamos as nossas alegrias e atenuamos as nossas tristezas, é com eles que sentimos conforto, compreensão, cumplicidade, ligação, vínculo. É através dos outros que nos conhecemos, pois é com um gesto amável que nos comovemos e com um gesto de rejeição que nos sentimos magoados. Independentemente da sua intenção, o importante é o que nós sentimos e ganhar essa consciência é reconhecer os nossos medos e os nossos sonhos, é perceber do que gostamos, do que precisamos e do que não queremos. É também através dos outros que crescemos, pois com eles vamos sanando feridas e concretizando desejos, não é seguramente ficando fechado em casa na esperança que tudo à nossa volta mude.

A vida encontra sentido quando criamos vínculo nas relações. Vinculamos quando satisfazemos a necessidade básica universal do ser humano de pertença. Sentir que se faz parte é uma das sensações mais reconfortantes que podemos ter e é tão poderosa que não é por acaso que estrangeiros que vivem fora do seu país tendem a procurar pessoas da mesma nacionalidade: partilham valores e formas de estar na vida onde se reconhecem e sentem pertencer a algo que ultrapassa a personalidade individual. Procuramos suprir esta necessidade de pertença em vários tipos de grupo (desporto, passatempos, família, etc.), mas muitas vezes sentimo-nos insatisfeitos porque em vez pertencermos sentimo-nos apenas integrados, o que não é a mesma coisa.

‘Integrar’ significa adaptar-se para ser aceite, implica o esforço de entender o funcionamento dessa(s) pessoa(s) e moldar-se ao seu mecanismo. Pelo contrário, ‘pertencer’ implica mostrar-se, expor a nossa natureza, em ambas as vertentes: medos e desejos, inseguranças e necessidades. Implica ser autêntico, o que é paradoxalmente difícil, pois passa por reconhecer o que sentimos para depois exprimi-lo, correndo sempre o risco de não sermos compreendidos e aceites. Quando isso acontece a dor é imensa, mas quando o interlocutor está recetivo e nos aceita, a relação fortalece-se. Permitir que o outro aceda às nossas imperfeições é a única maneira de alimentar uma relação verdadeira e nutritiva.

É pelas imperfeições reveladas através da nossa vulnerabilidade que se cria um vínculo saudável. O vínculo é o que existe entre as pessoas quando se sentem vistas, ouvidas, reconhecidas, valorizadas e amadas. Expor uma ferida aberta pode ser traumático, mas quando sentimos que do outro lado há abertura e empatia, pode ser curativo. Sentir essa confiança é fundamental, pois as relações também precisam de tempo e de um terreno fértil para crescer.

No medo de perder o outro colocamos uma máscara, fazemo-nos fortes, a custo de trairmos a nossa autenticidade. No entanto, se mostrarmo-nos é arriscado por desconhecermos a resposta do outro, ainda mais arriscado é escondermo-nos, pois isso leva-nos à ansiedade, à depressão e à dependência. Se dermos valor e honrarmos a nossa existência, partimos para a exploração dos nossos recursos internos, abrimo-nos à experiência, vamos atrás do prazer em vez de simplesmente evitar a dor, comunicamos de forma aberta e honesta e vivemos relações que nos fazem crescer. Nestas, não há espaço para uma fusão onde os dois se perdem na ilusão de serem apenas um, mas sim um encontro onde cada um mantem a sua identidade e surge uma terceira constituída pelos dois: Nós.