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Voltar a casa, depois do Irão

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«Recusava-me, pura e simplesmente, a acreditar que existisse de facto um país tão completamente mau. Fui porque estava convencida de que tinha de haver mais qualquer coisa. E porque gosto de ir à procura de santos onde me dizem que há demónios.» Alison Wearing em Lua de Mel no Irão

As minhas viagens nunca começam no dia em que parto. Começam quase sempre no momento em que decido que um dia irei a um determinado lugar.

Às vezes, o tempo que medeia entre a decisão e a partida é curto — um par de meses ou uma mão cheia de semanas. Como aquele Verão em que um namorado fez um estágio nos EUA e fui visitá-lo a Boston. Ou a noite de réveillon em Portugal, em que uma amiga me desafiou a festejar a chegada do ano do Dragão em Pequim. Pouco depois, aterrava na China. São oportunidades que decido agarrar, pretextos para passar algumas semanas em cidades que não eram prioritárias.

Outras vezes, entre o desejo e a concretização da viagem podem passar-se muitos anos. Foi o que aconteceu com o Brasil. Não sei apontar exactamente quando nasceu o sonho de lá ir. Talvez ele já estivesse no meu ADN. Julgo ter sido concebida ao som de uma bossa nova ou de um samba. E se não foi isso que aconteceu, ter desembarcado numa casa onde, para além dos meus pais, viviam Caetano, Betânia, Chico, Tom, Vinícius, Jorge, Erico e José Mauro bastou para marcar o meu destino. Sempre que estudava os Descobrimentos na escola, a ideia de ir ao Brasil era uma borboleta a voltear no meu estômago e quando finalmente lá pus os pés pela primeira vez, aos vinte e dois anos, Salvador da Baía era-me tão familiar que me convenci que já lá estivera noutra vida.

As minhas viagens começam quando uma notícia, um documentário, um filme, uma fotografia, uma música, um livro — quase sempre um livro! — ou até mesmo alguém que admiro me inculca uma imagem na cabeça e começo a ver-me nesse lugar: Stone Town porque lá nasceu Freddy Mercury; Roben Island onde Nelson Mandela esteve preso dezoito anos; São Paulo, para visitar o Museu da Língua Portuguesa; Brasília, por causa da Catedral de Niemeyer; a Cidade Proibida, que me foi apresentada por Bertolucci; as cataratas de Iguaçú por causa da música de Morricone; a Patagónia depois de ler Chatwin; Goa graças a Gonçalo Cadilhe; a Sinagoga dos Portugueses, em Amesterdão, por causa do romance de Yalom; os tenements de Nova Iorque explicados no livro de Augias.

E depois, durante as viagens, quando estou finalmente nos sítios com que tanto sonhei, tenho de fazer um exercício constante de tomada de consciência e dou por mim a repetir mentalmente: “Eu estou aqui. Tenho os pés aqui. Toco nestes muros com as minhas mãos. Respiro este ar. Mergulho nestas águas. Quero recordar para sempre as cores deste quadro, o aroma desta cidade, a musicalidade deste idioma que não entendo, este sabor que demoro a identificar. Experiencio em primeira mão, não há intermediários, fotografias, filmes ou livros. Eu estou aqui”. Procuro manter-me alerta, não deixar escapar nada, demorar-me, diluir-me. E agradecer o privilégio. Tudo foi possível porque persisti no sonho e agi para concretizá-lo. Mas também porque outros factores que não controlo se conjugaram na perfeição. Por isso, agradeço.

As minhas viagens nunca terminam no momento em que chego a casa. Nos primeiros dias acontece-me rejeitar a minha realidade. Não ligo a televisão, não ouço rádio, vou pouco à rua, não quero saber de nada, faço-me bicho do mato. Quando voltei da Argentina, resgatei um velho CD de Andrés Calamaro, que pus a tocar em loop, para que o seu sotaque porteño continuasse a embalar as minhas horas. Depois de Marrocos, condimentei durante meses os pratos mais rudimentares com uma mistura de especiarias para tagines. Regressada da China continuei a comer em tigelas e com pauzinhos. Voltei à Índia nas páginas d’ O Tigre Branco, à África do Sul com Um Longo Caminho Para a Liberdade, ao Brasil a cada romance de Jorge Amado e ao Japão pela mão de Banana Yoshimoto. O meu corpo deixara estes países, mas a minha alma continuava lá.

Decidi em 2001 que visitaria o Irão. Devo-o a Alison Wearing e ao seu livro Lua de Mel no Irão, que comprei por impulso no dia 6 de Agosto daquele ano, atraída pela capa. O que mais retive deste relato de viagem foram as pessoas, o surpreendente povo iraniano que até então era para mim apenas o eco das notícias: uma amálgama de gente ignorante e retrógrada, subjugada pela teocracia islâmica radical que lançara uma fatwa risível contra Salman Rushdie. Alison Wearing, contudo, levou-me a descobrir o Irão para além dessa ponta do icebergue e aguçou-me fatalmente a curiosidade. Uma curiosidade que sobreviveu a quinze anos, um mês e dezoito dias de espera. Aterrei em Teerão na manhã do dia 25 de Setembro de 2016.

Quantas vezes podemos nós alimentar expectativas em relação a um país durante anos, demorar meses a planear e a limar as arestas do roteiro, dissecar guias de viagens, vasculhar sites e blogues com as aventuras dos outros, requisitar livros na biblioteca, ver filmes e fotografias e falar com nativos expatriados, para depois chegar lá e ver as expectativas ultrapassadas? Talvez muito poucas. Mas foi o que me aconteceu. As três semanas que passei no Irão roçaram a perfeição. E não imaginam o quanto fui feliz.

E sim, as paisagens são estarrecedoras; os monumentos, deslumbrantes; a gastronomia, delicada; a mescla das heranças persa e árabe, fascinante. Toda a cultura iraniana, nas suas variadas formas de expressão, é riquíssima, sedutora e naturalmente próxima da portuguesa nalguns aspectos. Mas o que me arrebata são as pessoas. As pessoas para além dos seus líderes políticos e religiosos, da geopolítica, das intrigas internacionais, do petróleo, da energia nuclear, da corrupção. As pessoas que me deram as boas vindas ao Irão todos os dias ao passear pelas ruas, me abriram as portas das suas casas, me serviram chá, me deram de comer e me permitiram ver através dos seus olhos um país que grande parte do mundo teima em distorcer. As pessoas como eu, que vivem o seu dia a dia o melhor que podem e que, tal como eu, só querem ser felizes apesar de tudo.

Mas desta vez o regresso a casa foi diferente. Mal entrei no avião da British Airways que me trouxe de volta, as primeiras palavras que dirigi ao comissário de bordo foram para perguntar se podia tirar o hijab. Depois de levantarmos voo e o sinal do cinto se ter apagado, fugi para a casa de banho numa ânsia de despir a túnica lúgubre comprada em Yazd, que me disfarçava a formas do corpo. E ao chegar a casa liguei o rádio que debita as músicas mais comerciais e lancei-me sobre a televisão, vagueei pelas centenas de canais, voltei às séries do costume e vi vários filmes de enfiada, não sem antes ter saído à rua exibindo as cores garridas que adoro e o cabelo recém lavado, que deixei secar ao ar livre. Desta vez não houve qualquer sentimento de nostalgia ao ver o país afastar-se pela janela do avião, nem me fechei na minha “bolha” ao chegar. Pelo contrário, precisei sofregamente da minha realidade comezinha, do que de mais imediato e fácil ela tem para me oferecer. Sem grandes cogitações, nem filosofias. Apenas alívio.

Tudo nesta vida é discutível. Quiçá, o conceito de liberdade à cabeça. Muitos tratados já foram escritos sobre este tema e muitos outros se seguirão. Os mais cépticos (ou os mais cínicos?) dir-me-ão, por exemplo, que o meu sentimento de liberdade é ilusório. Ser-se-á realmente livre em Portugal? Bem, se compararmos com o que testemunhei no Irão dir-vos-ei sem dúvida que sim. E por que razão me atingiu particularmente a falta de liberdade no Irão se já visitei outros países de povos amordaçados? Talvez porque nunca antes tivesse sentido verdadeiramente o peso da discriminação com base no meu sexo.

Senti-a primeiro no que é mais superficial e visível — o vestuário. Precisaria de mais tempo para experienciar a opressão diária das iranianas para além das camadas de tecido negro que as cobrem. Porém, é ingénuo pensar que o hijab e o chador são apenas roupa. Não são. São o sintoma mais evidente da repressão constante a que as mulheres estão sujeitas por força dos costumes e das leis feitas pelos homens (e tristemente defendidas por uma certa franja de mulheres…). No mínimo o hijab e o chador são um dos muitos sintomas da falta de liberdade de escolha. Que o digam algumas das iranianas que viajaram comigo no avião: preferiram livrar-se dos lenços e acompanharam as suas refeições com um copo de vinho.

Precisamente quinze dias após o meu regresso a Portugal comecei a ler O Menino de Cabul. Sabia que pelo menos parte do romance se passaria no Afeganistão. O que eu não sabia é que estava prestes a voltar ao Irão pelas mãos de Khaled Hosseini. Bastou que mencionasse o mármore de Isfahan, a mesquita de Mashad, o bazar de Teerão e que um personagem se despedisse de alguém com um “Khodafez” — que Deus te guarde — para que um dique se abrisse no meu peito: senti saudades pungentes do Irão! E soube que precisava de escrever este texto.

Sim, o Irão tem muitos demónios. Que país, não os tem? Mas o Irão tem muitos mais santos, santos que para mim têm nomes e rostos muito concretos, santos que eu quero na minha vida. Peço-lhes desculpa pela minha ignorância e arrogância, declaro-lhes o meu fascínio pela sua terra e espero, com humildade, que me abram as portas das suas casas pelo menos mais uma vez. Porque haverá sempre mais qualquer coisa para ver, aprender e compreender melhor.

Quero voltar ao Irão. Hei de voltar ao Irão. Inshallah!